Como descrever um personagem belo, como transparecer a beleza no texto para não precisar dizer que o personagem é belo, como lidar com diferentes padrões de beleza, como não reforçar estereótipos e como não mentir descaradamente dizendo que algo feio é bonito? Perguntas que nos atormentam a cada vezemquando.
Já reparou que nos padrões de beleza que a sociedade compartilha, uma grande parte deles pode ser agrupada em “coisas que achamos bonitas porque dão trabalho”?
Talvez não, porque não costumamos pensar muito sobre a beleza, apenas apreciá-la, mas o ofício de escrever é pensar sempre sobre a beleza. Como descrever um personagem belo, como transparecer a beleza no texto para não precisar dizer que o personagem é belo, como lidar com diferentes padrões de beleza, como não reforçar estereótipos e como não mentir descaradamente dizendo que algo feio é bonito? Perguntas que nos atormentam a cada vezemquando. Por causa dessas perguntas, há algum tempo percebi que quase qualquer coisa que demande esforço, muito esforço, costuma ser considerada bonita.
Exemplos? Os ternos de linho branco, impecáveis e bem passados no sertão nordestino, maquiagens e penteados que exigem horas para serem feitos, os pés atrofiados da nobreza chinesa. Não, não procure imagens dessa última, apenas saiba que meninas chinesas tinham seus pés amarrados para os deformar e impedir de crescer, porque isto era bonito, antes da Revolução Cultural Chinesa instituir que bonito é trabalhar. E olhe que interessante, o que dá trabalho é bonito, mas trabalhar não é bonito. Tirar a poeira do maldito terno branco e passá-lo com ferro a carvão não é bonito ou feito por pessoas bonitas, pessoas bonitas não trabalham, podem ter inclusive os pés atrofiados para sequer caminhar direito.
Hannah Arendt começa seu livro A Condição Humana separando as atividades universais dos seres humanos em categorias, porque é este o trabalho dos cientistas, dissecar a realidade e estudar cada órgão para entender o organismo. A separação mais original do livro é entre trabalho e labor. Enquanto o trabalho tem finalidades externas, pode ser medido, porque tem começo, meio e fim, o labor são as atividades sem fim da subsistência como os afazeres domésticos e a reprodução.
O fundamental é perceber que existe uma hierarquia, trabalho é superior ao labor e inferior à ação, forma quase mítica de trabalho que se liberta do universo mesquinho da necessidade. Falando em economicês, que mais gente entende hoje em dia que filosofês, ação é investimento, e trabalho e labor são custeio, sendo trabalho a atividade fim e labor a atividade meio.
Essa hierarquia dos trabalhos pode ser vista em todos os sistemas de organização social, seja escravocrata, aristocrático ou capitalista, e curiosamente no padrão de beleza.
Tudo que demonstra a disponibilidade de horas e horas, suas ou de algum empregado e portanto o distanciamento do labor, quiçá do trabalho, é bonito. Não, não digo que só é bonito o que demonstra esse tempo livre, mas pode ter certeza que o que é reconhecido como trabalhoso é reconhecido como bonito.
Ou sem rodeios, papo reto, bonito é ser rico, bonito é ostentar.
O que, voltando à dúvida sobre como não reproduzir estereótipos de beleza, a resposta é dar uma mão a Mao Tsé-Tung, outra à Stálin e defender que bonito é trabalhar.