O jornal nos mostra a verdade, mas não é para encontrar a verdade que lemos o jornal. Precisamos satisfazer necessidades mais primárias que “conhecer um mundo maior” […] Na verdade não importa se é verdade ou ficção o que o jornal mostra, desde que nos comova. Um tema “saturar” é ele deixar de nos satisfazer, nos indignar, nos comover. Se ainda nos comovessem os linchamentos eles ainda estariam nos jornais.

 

 

 

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Ler 1984 foi algo muito difícil, dolorido até, por vários motivos. É um livro todo difícil que até hoje não sei dizer se gostei, apesar de ter certeza de que é bom e que só não recomendo mais amiúde porque não sou sádico, a não ser entre quatro paredes.

Uma das coisas que Orwell me ensinou em 1984, provavelmente porque era jornalista, assim como Winston, apesar de Winston ser um jornalista de um tipo bem específico, que não cobre o presente, mas edita o passado, é que o mundo não existe antes dele ser mostrado para mim através dos jornais. O Partido justificava as atrocidades que cometia como “esforço de guerra” e Winston se perguntava “existe mesmo uma guerra?”, porque seu trabalho era exatamente desdizer o que o Partido tinha dito no passado, trocando uma verdade por outra.

Isso é difícil de aceitar, dolorido até, porque quer dizer que você está à mercê de outros, dos jornais, e tem que confiar neles. Ou confia, ou restringe seu mundo ao que pode observar diretamente. Essa insegurança constante, essa incerteza, essa sensação de estar à mercê é cicatriz desse primeiro golpe baixo de Orwell.

Falemos de estatísticas. Em média, por dia no Brasil a polícia registra um linchamento e o Disque 100 recebe cento e vinte nove denúncias de violência psicológica, física e sexual contra crianças. Para começar pelo começo, você confia nesses dois órgãos como fontes fiáveis de informações? Confia que eles retratam fielmente a realidade, sem maquiagens e manipulações, pra mais ou para menos? Confia que, mesmo que as instituições sejam honestas, as pessoas dentro dela também são? Que não há “renegados” falseando esses dados for quaisquer motivos, sem que as direções saibam?

Pelo bem do argumento vamos supor que sim, que essas estatísticas são realmente confiáveis. Faz quantos meses que não vê uma notícia sobre linchamentos? Se a estatística está correta não houve nada de excepcional no início do ano, nenhuma “epidemia de justiça popular”. Os jornais simplesmente descobriram um fenômeno razoavelmente comum quando ele aconteceu em um lugar onde os jornais costumam olhar, a Zona Sul do Rio, bairro rico de gente branca, e começaram a procurar pelo fenômeno em outros lugares. E encontraram. E se procurassem hoje encontrariam, mas o tema “saturou”. O mesmo aconteceu com as crianças vítimas de violência depois que a menina branca e rica foi jogada da janela. Outros casos apareceram, o tema “saturou” e deixou de ser notícia. Há quanto tempo não vê notícias sobre crianças vítimas de violência?

Mas o que exatamente é um tema “saturar”?

O jornal nos mostra a verdade, mas não é para encontrar a verdade que lemos o jornal. Precisamos satisfazer necessidades mais primárias que “conhecer um mundo maior”. As notícias sobre a produção recorde de sapatos em uma Londres onde milhares andavam descalços ou sobre as vitórias na guerra contra a Eurásia e a Estásia em fronts a dezenas de milhares de quilômetros de distância não serviam para conhecer o mundo, mas para satisfazer. Eram os gols da rodada para serem vibrados, comemorados e comentados. Na verdade não importa se é verdade ou ficção o que o jornal mostra, desde que nos comova. Um tema “saturar” é ele deixar de nos satisfazer, nos indignar, nos comover. Se ainda nos comovessem os linchamentos eles ainda estariam nos jornais.

Não é de espantar que tantos jornalistas tenham escrito ficção e tantos escritores tenham trabalhado em jornais, porque para o público, não faz diferença. O Brasileirão poderia sequer existir, ser uma grande novela, que para boa parte do público não faria diferença. Talvez ele até preferisse um enredo planejadamente imprevisível à imprevisibilidade de fato do campeonato. Os jornais constroem o mundo para mim, mas a escolha dos tijolos da construção depende dos humores inconstantes e egoístas dessa coisa amorfa chamada público. Esse desespero é a cicatriz desse segundo golpe baixo de Orwell.

Há outros golpes baixos, é um livro agressivo e quem o atravessa sem cicatrizes é porque não o entendeu, mas encerro com uma pergunta suave: que necessidades você busca satisfazer ao abrir o jornal?