Fernando Teixeira
Fernando Teixeira (Foto: Divulgação)

Lançamento da Boutique do Livro confirma o poeta como peça central na cultura divinopolitana

O lançamento do novo livro do poeta Fernando Teixeira, feito na quarta-feira (18/10) pela Boutique do Livro, que o editou, é acontecimento digno de ser posto entre os mais relevantes da literatura divinopolitana em 2023. Pela criação lírica e pela atitude estética que a inspirou, “Do ver em Busca” merece leitura atenta de todos os que se interessam pela cultura local. 

Aos mais jovens, será conveniente lembrar que Fernando é um dos nomes centrais da cena literária de Divinópolis desde que começou a publicar, ainda nos anos 1960, em uma atividade incessante que  inclui sua participação em movimentos como o grupo Agora, marco renovador da literatura no município, e na Academia Divinopolitana de Letras, da qual se tornou membro em 1966 e que veio a presidir em diversas ocasiões. Em uma carreira que conta até aqui com seis décadas de produção — e que merece um amplo evento temático que a recapitule, de preferência com uma mostra e um ciclo de debates —, Fernando escreveu poesia, prosa, ensaio, literatura infantil, artigos de intervenção e outros gêneros que o fixaram como uma referência incontornável para quem estuda a dinâmica da literatura e da arte em Divinópolis nesse período. 

É esse autor prolífico, na viva floração de seus 83 janeiros, que agora enriquece de novo o clima cultural divinopolitano com o seu “Do ver em busca”, que pode ser situado, do ponto de vista teórico, entre os mais felizes desdobramentos da estética concretista. Contribuição decisiva do Brasil à literatura mundial, o movimento da poesia concreta eclodiu nos anos 1950 por obra e graça dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos e de Décio Pignatari, aos quais se seguiu um extenso grupo de talentosos criadores que tomou a trilha aberta pelos três paulistas. Lançado em 1958, o primeiro manifesto dos concretos brasileiros, ao qual chamaram seu “Plano Piloto”, encontrou Fernando Teixeira no decisivo momento de transição da adolescência para a vida adulta. 

Diálogo concreto

A marca profunda que essa estética e seus desdobramentos deixaram no autor divinopolitano perpassa sua obra poética e, de certo modo, encontra seu ponto culminante até o momento na publicação que a Boutique do Livro acaba de lançar. De fato, estão em “Do ver em busca” exemplos bem acabados de um diálogo longo e criativo com os pressupostos teóricos do concretismo. Assim, a exploração da visualidade da palavra, traço mais facilmente identificável dos concretos, está, por exemplo, no extraordinário “Descer”, poema que consegue a façanha de concentrar uma reflexão existencial à maneira do filósofo Heiddeger (a essência do homem, do início ao fim da vida, entendida como pura possibilidade de transformação) em um econômico discurso linguístico. E o mesmo pode ser dito de “Velocidade”, poema que nada fica a dever aos melhores momentos dos irmãos Campos e Décio Pignatari.

O diálogo criativo com a estética concretista está em experimentos radicais de expressão, como os dos poemas da seção “Atitude”, a última do livro, que explora as possibilidades de comunicação de pontos e sinais gráficos. Esse diálogo continua em poemas como “Verbo, Palavra” e “Ver, Olhar, Contemplar”, que operam a desconstrução criativa dos significantes em busca de novos significados, e em poemas como “Texto, pretexto”, “Fala, cala, palavra”, onde a preocupação metalinguística é preponderante. 

Pertence, aliás, ao grupo de poemas metalinguísticos aquele que, sem sombra de dúvida, merece lugar entre as melhores peças da lavra de Fernando até o presente. Trata-se do poema que, sem explicitá-la no corpo do texto, faz da linguagem verbal uma das mais bem realizadas descrições líricas que ela tem recebido. Com a refinada capacidade de fundir abundância de sentido e contenção linguística, Fernando inicia o texto por definir a língua como “recanto da fala” para terminar definindo-a, de modo existencial, como “surpresa do homem”, construindo entre um ponto e outro um trajeto discursivo no qual encontra metáforas elegantes como “continente da boca” e “meandro do homem”. E o melhor é que em nenhuma das peças do livro o artesanato verbal de Fernando soa esquemático ou previsível. Pelo contrário: sua marca de autor está em cada linha de cada poema, o que denota seu profundo e íntimo trato com as ideias concretistas e os princípios de outras estéticas pelas quais passou de maneira muito peculiar. 

Atitude

Se a criação lírica de “Do ver em busca” é notável, ainda mais o é a atitude estética que lhe deu inspiração. E aqui talvez resida o traço mais impressionante da nova produção poética de Fernando Teixeira. A obra que a Boutique do Livro acaba de dar ao público consolida o autor em uma posição tão central quanto única na cultura de Divinópolis. Acadêmico dedicado, Fernando é também um vanguardista, e assim vai provando que a academia enquanto instituição não é — nunca foi, de fato — incompatível com a pesquisa estética de vanguarda. Poeta com seis décadas de estrada na literatura, o que para muitos significaria apego exclusivo aos clássicos da tradição, Fernando desponta como um experimentador sem medo do novo em matéria de linguagem. E assim, situando-se, por vocação e escolha, na confluência entre academia e vanguarda, entre o clássico e o experimental, o poeta de “Do ver em busca” constrói, pela sua audaciosa atitude estética, a mais sólida ponte entre as diferentes gerações hoje ativas na literatura divinopolitana. E o faz sem as concessões ditadas pela intenção de agradar a todos, da qual se pode dizer, a propósito, que nunca produziu nada de relevante na cultura literária. 

A base dessa postura está, por certo, na atitude existencial que antecede o fazer literário. Católico praticante, Fernando é dono de uma alma ampla e profunda, que já veio de fábrica com a extraordinária capacidade de aglutinar um extenso rol de interesses que a muitos soariam como inconciliáveis. Nessa alma têm cabido, sem conflito, o professor, o jurista, o gestor de instituição escolar, o leigo engajado nas boas causas da cidade e um cidadão que, nas grandes questões de relevância pública, tomou sempre o lado certo e combateu sempre o bom combate. Nessa alma, ainda, têm cabido a cerebral experimentação linguística e a doçura do autor de textos para a infância, assim como a seriedade do intelectual e a gentileza do homem que tudo faz com amor. Fernando Teixeira, como o outro Fernando, é muitos em um só. E nem precisa de heterônimos, pois não separa seus múltiplos “eus”, preferindo fundi-los no olhar sempre aberto ao novo que lança ao mundo.