Esse mundo mais justo conseguiria continuar existindo sem manutenção constante? Estamos condenado a tornar um mundo mais justo, para que os filhos dele o tornem mais injusto novamente? Não haveria meios menos sofridos do que levar porrada para fazer boas pessoas?

 

 

 

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Álvaro de Campos, no Poema em Linha Reta começa com uma afirmação que não podemos discordar nesses tempos de Facebook onde vivemos uma vida editada onde apenas os bons momentos existem.

            “Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
            Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.”

Conheci muita gente assim, principalmente no tempo em que trabalhei no Banco. Meus gerentes eram campeões da vida, com passados gloriosos e futuros promissores. Parece que é preciso ser dessa estirpe para ascender nos bancos. Mas se há uma coisa que une os campeões de tudo que conheço é que os odeio a todos.

Todos os meus amigos são aqueles que levaram porrada pra caralho da vida. Que sofreram bulling na escola, sofreram preconceito, tiveram e têm famílias desestruturadas, perderam a fé na vida, chegaram à  borda do desespero, atravessaram crises depressivas… Todos. As pessoas de quem eu realmente gosto são as que sabem que a vida é um cachorro louco que não precisa de motivos para morder. Aliás, são as que guardam cicatrizes. Meus amigos são pessoas boas, que sofreram o diabo sem o merecer, e por isso sabem que o mundo é essencialmente injusto, e por isso os amo.

A justiça é um conceito fundamental para nós e resumindo o bastante para a definição caber numa crônica, a justiça é a “retribuição adequada”. Nos emociona a história de Joãozinho, que caminhava cinco quilômetros para ir à escola, tinha que estudar com lamparina em casa, catava latinha para financiar a faculdade e hoje é desembargador. Nos emociona porque ser desembargador é uma retribuição adequada ao esforço e sacrifício de Joãozinho.

Acreditar que o mundo é um lugar essencialmente injusto é acreditar também que o esforço não garante nada, que de cada dez Joãozinhos anônimos, um virou desembargador para aquecer nosso coração, mas quatro foram assassinados em autos de resistência pela polícia quando voltavam para casa, três desistiram da faculdade depois da décima agressão racista e dois tocam pequenos e modestos escritórios de advocacia.

Os “campeões em tudo”, os Joãozinhos que deram certo, mesmo que nascido em berço de ouro como é mais comum, quase sempre acreditam que o mundo é justo e assim que ouvem a história do Joãozinho que deu errado concluem que o erro é do Joãozinho, afinal, o mundo retribui de modo adequado.

Quem levou porrada, sabe que todos os Joãozinhos são nascidos iguais e que seus destinos se separarem não é culpa deles, o mundo simplesmente não é justo. Quando se deparam com o sofrimento do mundo sua primeira atitude é a compaixão e não acusação. Como sabem que a justiça é um bem raro e precioso a valorizam mais que tudo. Das mais variadas formas tentam fazer do mundo um lugar de menos sofrimento, porque bem sabem o que é sofrer.

Mas repare a contradição sendo gestada: se um dia nós tivermos sucesso em reduzir as injustiças do mundo, o tipo de pessoa que amo, forjadas pela experiência dessas injustiças, acaba. Esse mundo mais justo conseguiria continuar existindo sem manutenção constante? Estamos condenado a tornar um mundo mais justo, para que os filhos dele o tornem mais injusto novamente? Não haveria meios menos sofridos do que levar porrada de fazer boas pessoas?