Pintura "Pescando" de José Ferraz de Almeida Junior, de 1894

Pintura “Pescando” de José Ferraz de Almeida Junior, de 1894

 

Não era muito inteligente rir: o couro comia. Então eu me mantinha em pé, rígido, mãos para trás e olhos fixos naquele senhor tão querido e visivelmente irritado.

 

– Deus está vendo tudo, menino. Você precisa obedecer os mais velhos, parar de ficar brincando na rua, tirar notas melhores na escola… seja um homem! – ele praticamente não piscava, enquanto tentava me amedrontar com o ser punidor invisível, que, aparentemente era bem íntimo dele.

 

E eu só tinha chutado uma bola no muro – não podia.

 

Sem televisão, apenas com um rádio chiando que só sintonizava uma frequência, era por ele e mais ninguém – eu o amava. E no rigoroso inverno do começo da década de 90; bermuda, chinelo, camisa de botão semiaberta, um chapéu de palha bastante castigado, um saco de farelo vazio e duas varas de bambu.

 

– Acorda, cinco minutos e estou indo!

 

Em três movimentos e já havia pegado meus chinelos, blusa, óculos e vestido as calças. O sol ainda demoraria uma hora para aparecer.

 

Sentados à beira daquele lago congelante, ele não sabia, mas eu odiava pescar. A gente permanecia naquele silêncio, que para muitos seria constrangedor, mas para mim era uma longa conversa, uma aula de paciência… até que o peixe fisgava.

 

Sábado, sol apontando quase meio-dia, saco cheio de peixes, algumas pessoas chegando:

 

– Parabéns, filho!

 

– Senhor?

 

– Parabéns, seu aniversário, oito anos, já é um homem, carregue os peixes! – e saia em disparada, enquanto eu arrastava de costas o saco de farelo com as duas mãos.

 

Já sentados na F100, alguns segundos de paciência até o motor aquecer.

 

– Achei que o senhor não sabia – eu disse.

 

Ele sequer me olhou, puxou o freio de mão e fechou a janela para se proteger da fumaça daquele rancheiro.

 

– Não magoe ninguém!

 

Eu quis perguntar o que ele quis dizer, mas ele me olhou diretamente, pela primeira vez naquela manhã.

 

– Este é meu conselho para o seu aniversário, uma coisa que aprendi errando e você não vai precisar errar pra saber que não se deve fazer.

 

Franzi a testa, cocei a cabeça, ia perguntar, mas ele continuou.

 

– Sua avó não conversa comigo há três anos, você sabe, todos sabem e talvez nunca mais voltaremos a nos falar. Não magoe ninguém.

 

E partiu.

 

O caminho até nossa casa foi silencioso, como sempre e eu podia ver pelo espelho seus olhos úmidos, sua feição triste, seus dentes fortemente cerrados. A vontade era de o abraçá-lo o mais forte que eu pudesse, fechar os olhos e apertar mais… me concentrei na paisagem da janela.

 

Naquela ano vovó morreu. A casa se encheu de parentes, vizinhos e desconhecidos numa descontrolada lamentação.

 

Chorei.

 

Mãos na face e rosto entre as pernas. Sentado num canto da cozinha eu chorei.

 

– Menino, levanta!

 

Em pé, na minha frente, meu avô me puxou para um abraço mais forte que o meu corpo podia aguentar – fechei os olhos.

 

– Não chore, vai me magoar!

 

Nunca mais chorei.