“Se a “pureza dos propósitos”, os princípios e valores morais, são apenas ideias dentro da cabeça das pessoas e não algo que existe por si; se nossas ações afetam nós mesmos, porque nunca estamos seguros e isolados do mundo, mas imersos nele, então é o combate do adversário que forja os princípios, e não os princípios que motivam o combate. Ou em termos menos belicosos: “as pessoas que são boas, são porque praticam o bem”, em vez de “as pessoas praticam o bem porque são boas”.

 

 

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Não me lembro exatamente quando li essa frase, talvez tivesse doze anos, mas lembro que não a entendi. Desconfiava que havia nela uma sabedoria muito profunda, enfiada de contrabando nas páginas do gibi do Demolidor em que ela apareceu e, por sorte, consegui a manter na memória até ser capaz de entender o roteirista.

Talvez seja melhor começar nossa pequena busca do tempo perdido explicando o contexto. O Demolidor se encontra com seu antigo mestre ninja, o ajuda em uma luta e lembra desta frase no final da história, olhando para o prédio onde mora seu mais emblemático inimigo, o Rei do Crime. A frase anuncia a decisão dele de deixar os receios de lado e tentar derrotar definitivamente o adversário.

Uma das mais finas ironias nisto tudo é que as histórias do Demolidor de modo geral e seu mestre ninja em particular não são facilmente associados com o materialismo como filosofia ou a fenomenologia, mas foi a partir destes que consegui entender plenamente o adágio.

No ocidente materialismo se tornou o padrão de entendimento do mundo depois de uma batalha longa e árdua. Se fosse resumir o materialismo com uma frase seria “a realidade material é a origem das ideias”, mas não quero resumir, então digo “a realidade material é a única que existe”.

Hoje isto está mais disseminado do que a gente pensa. Por exemplo, as perspectivas modernas de educação se baseiam em fazer, é importante que os alunos façam descobertas, construam seu conhecimento através da ação em vez de simplesmente ouvir ou ler. É algo um pouco sutil, mas toda vez que algum educador fala em “construir o conhecimento” ele está dizendo que o conhecimento é um “objeto” que o ser humano cria, e que se não houvesse seres humanos, não haveria conhecimento. Os idealistas vão dizer o contrário, o mundo é feito de ideias que existem antes do ser humano e nós só as captamos.

O grande pulo do gato é que “ideia” aqui não significa só ideia, mas todos os substantivos abstratos, coisas como amor, bondade, pureza e outros. Um materialista não acredita em um bem inato, preexistente ou absoluto, mas apenas ações que que seres humanos, com suas falhas de julgamento, classificam como boas ou más. Falar em “pureza dos propósitos” é algo quase fútil neste sentido, mas já fica claro que desse ponto de vista não importa o quanto o Demolidor é “bom” ou “puro”, apenas o que ele faz. Sua a decisão de finalmente enfrentar o Rei do Crime, existe e pode ser consideradas boa ou má, sua bondade inata não. Sarte resumiu isso em apenas uma frase, certeira e aparentemente contraditória: “Os abstratos só existem concretamente”.

A grande descoberta da fenomenologia, se fosse resumir não caberia em uma frase mas seria algo como “tudo com que você se relaciona, inclusive o que você mesmo faz, te afeta”, mas não quero resumir, então digo “você nunca está seguro”. E aqui está a grande chave para entender a frase dos meus doze anos. Se a “pureza dos propósitos”, os princípios e valores morais, são apenas ideias dentro da cabeça das pessoas e não algo que existe por si; se nossas ações afetam nós mesmos, porque nunca estamos seguros e isolados do mundo, mas imersos nele, então é o combate do adversário que forja os princípios, e não os princípios que motivam o combate. Ou em termos menos belicosos: “as pessoas que são boas, são porque praticam o bem”, em vez de “as pessoas praticam o bem porque são boas”.

Os valores são criados pelas ações e precisam ser constantemente exercitados. Essa é a mensagem final da citação que me acompanha por anos.

Já foi à academia de valores hoje?