Aos 10 anos de idade tive minha primeira conclusão: Minhas pernas não teriam capacidade de me levar onde eu queria. Eram fracas e se cansavam rapidamente. Mas também concluí que os muros invisíveis de minha cidade não podiam ser limite.
Na casa de tijolo à vista em que eu vivia, o ponto mais alto do terreno era um cupinzeiro morto perto do canil e todas as manhãs, após dar milho às galinhas, eu subia nele e forçava meus pequenos olhos no horizonte. A visão era sempre a mesma, exceto quando o senhor Manoel soltava o gado ou algum animal morria e o céu se enchia de urubus. Não era isto. Meu peito doía de angustia e o ar chegava a faltar – meu espírito era grande demais para ficar trancado.
Minha rotina mudava uma vez por semana, quando um senhor trazia lavagem para os porcos. Ele reunia restos de comida de toda a região e vendia para os criadores de gado da região. Andava numa carroça barulhenta, puxada por um burro. O velho sempre começava seu trabalho na região bem cedo, acabando no começo da noite e para o burro ter um pouco de descanso, ele se deitava debaixo de um pé de manga, em uma picada perto de minha casa – era minha chance. Eu levava água e algo para ele comer e em troca, ele me contava suas histórias até cair no sono. Com voz rouca e pigarreando por causa do fumo na boca, ele falava sobre um rei ao sul, que degolava quem não se curvava quando ele passava. Também contava sobre uma enorme cobra, com duas cabeças, que vivia em um riacho e comia todos os peixes de uma vila e minha preferida; a de uma menina que não podia tocar em nada, pois incendiava tudo. Ele sempre dormia no meio de uma história e eu voltava para casa imaginando como seria o fim. Certa vez ele me contou que em uma das cidades em que ele foi trabalhar, uma velha jurava que tinha perdido a visão ao ver um anjo. Ela ficava sentada em um banco de madeira, perto de uma capela, sempre com o rosto virado para a mesma direção. As pessoas passavam e lhe davam moedas, outros tentavam falar com ela, mas ela só repetia uma coisa: – Ele vai voltar.
Eu, com meus olhos arregalados, ficava viajando nas histórias daquele velho sujo e fedido, mas nem me importava com o cheiro, na verdade eu não estava ali, eu estava no meio de suas histórias, em algum ponto escondido, onde eu pudesse observar claramente ou participar ativamente do que era relatado. Quando ele contou da cobra de duas cabeças que deixou uma vila inteira na miséria, por comer o único sustento do povo, eu me imaginava como um pescador com a ambição de pescá-la. Na história do rei malvado, eu era o rebelde que instigava o povo contra ele e na da menina incendiária… eu era a menina. Eu me sentia na obrigação de completar aquelas histórias fantásticas, que para mim, eram verdades de um mundo que eu desconhecia.
Certo dia arrisquei:
– Me leva com o senhor? – pedi, já lhe entregando uma sacola de goiabas e uma marmita com arroz e buchada, que meu avô tinha feito.
Ele sem responder, pegou a sacola, deu de ombros e foi embora para nunca mais voltar.
Hoje eu o entendo.
Passei anos esperando que ele voltasse, subia no cupinzeiro para ver se o avistava no horizonte, mas nunca mais o vi. Descobri então que seu sumiço me preservara. Se ele tivesse me levado eu perderia o encanto e com a ausência de seus relatos, eu passei a criar os meus, na clara descoberta que aquelas histórias estavam também ao meu redor, como nos exemplos religiosos da minha avó, nas brigas intermitentes dos fazendeiros por terra e nas injustificáveis maldades de meu avô. O meu mundo era uma fábula pronta, estava fácil demais, eu não precisaria ir em busca de nada.
Mais tarde, tive uma amiga que só pensava em morrer (e até hoje não conseguiu), tive também um amigo ladrão, mas que se arrependia logo em seguida e se arriscava para devolver o furto, passou também por minha vida uma garota, que definiu sua vida aos 14 anos, escolhendo seu eterno futuro marido e sua eterna futura vida que não chegava nunca, que não passava. Houve casos mais tristes, como uma tia que foi educada pelo filho e uma vizinha idosa que sustentou até a morte um marido infiel, sabendo, chorando todos os dias pontualmente às 5h30 – horário em que se levantava e fazia o café do homem. Comparando hoje, percebo que não há diferença alguma nas histórias que aquele velho contava e as que presenciei. Também não sei dizer se sou mais fantasioso que ele ou vice-versa e é por isso que escrevo, como quem conta o que viu, porque na verdade eu vejo, na verdade eu vivo cada conto. É um mundo na minha cabeça que não diferencio do mundo em que vivo, o que me move é a necessidade de relatar o que sinto e o que sinto são histórias que eu jamais poderia participar e por isso as crio, tornando-as assim, parte da minha vida. E quando me perguntam se é verdade o que leem nos meus escritos, eu sempre penso alguns segundos, porque na verdade eu não sei.