itamar

 

Morri. Bem,é claro que não me desesperei, havia de acontecer – sempre há. Puxei meio cigarro que há muito estava escondido na fronha do travesseiro e acendi com o último palito; a enfermeira Lurdinha me mataria, de novo, se visse.

 

Da janela do hospital, sem a força de meus óculos amarelados pelo tempo, a cidade toda estava ao alcance de minha mão: minha casa, os locais por onde trabalhei, os bares onde bebi, a pracinha do quarteirão fechado estava lá, desta vez vazia, como a Câmara, como a cidade, menos os bares, dava pra ver alguns amigos lá – não sabiam ainda. Chorei. Mas foi internamente, foi da emoção da lembrança.

 

Minha voz rouca não mais seria ouvida, minhas brigas políticas, piadas improvisadas, histórias de toda uma vida, não, eu não queria ir. Senti um abraço apertado, meus filhos, minha esposa, meus amigos, pessoas que eu achava que sequer gostavam de mim, chegavam. Eu ensaiei um discurso para quando partisse, eu prometi pra mim mesmo que faria, mas, tentei, pelos deuses, juro que tentei – não houve tempo.

 

Engoli minhas mágoas incompreensíveis, meu amor abafado pelo inevitável e passei a escutar. Meus entes relembravam histórias que eu já não recordava, meus amigos recontavam meus discursos que eu jurava que eles não tinham ouvido; havia sinceridade, havia surpresa, mas havia o contentamento da admiração. Chorei novamente. E sobre a aura de santidade e o manto sagrado que todos os mortos são revestidos, me vi nu, exposto, quase que estudado, diante questionamentos e afirmações sensíveis e emocionadas: Por que ele? O que será de nossa política sem essa irreverência, essa coragem? Não houve maior autodidata nessa cidade. Sentiremos falta de suas histórias, seu humor ácido e de seu conhecimento ímpar. Deixei meu legado.

 

Engoli minha humildade e reconheci o meu trabalho – eu tinha que fazê-lo. Ali, passível, eu vi que fiz o meu melhor e o que eu não demonstrei, eles sabiam. Tinha textos inéditos, uma edição do “Pinga Fogo” quase pronta, um projeto para apresentar ao presidente da Câmara, uma reunião de boteco para mais tarde, uma conversa para ter com meus filhos, um presente para minha mulher, dois telefonemas importantes, também tinha que parar de fumar para voltar a fumar novamente. Ri sozinho. Distribuí abraços retroativos que puderam sentir quando da minha presença física. Pude assim perceber que não houve um vivente que compartilhou um pouco de seu tempo comigo, que segurou minha mão, que riu de minhas imposições, concordando ou discordando veemente, que não sentirá o frio vazio de minha partida.

 

*texto publicado no livro “Doa a quem doer”, em homenagem ao jornalista Itamar de Oliveira, morto em 2013.