Vista parcial do Centro Histórico de Pitangui (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Lei que objetivou preservar casario desvalorizou vários imóveis e os empurra ao abandono na cidade tricentenária; autor de livro atualiza tema em documentário

Trecho de gravação antiga mostra casarões coloniais em Pitangui (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Preservar o que restava da arquitetura colonial de Pitangui, cidade do Centro-Oeste de Minas fundada em 1715 e que foi a sétima Vila do Ouro de Minas Gerais. Esse era o objetivo do tombamento do Centro Histórico, cujo processo começou em 2004 e foi oficializado em 2008. A mudança proíbe proprietários de fazerem mudanças significativas nas estruturas internas e externas e os obriga a restaurar as propriedades seguindo normas específicas. Vinte anos depois das primeiras discussões, a maior parte dos imóveis está preservada. Porém, os altos custos de restauração e manutenção geraram desvalorização e empurraram várias dessas propriedades ao abandono.

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O tombamento deu-se em meio a polêmicas envolvendo o Instituto do Patrimônio Histórico de Minas Gerais (Iepha-MG), a Prefeitura e donos dos imóveis incluídos na área tombada. O jornalista Marcelo Freitas narrou esses imbróglios no livro “A Construção do Tombamento” – lançado em 2012 pela editora Comunicação de Fato. A obra apresentou os pontos mais marcantes das discussões e lançou olhares ao futuro.

“Pitangui foi um importante centro minerador de ouro, no século 18. Em seguida, entrou em decadência, mas reergueu-se no século 20. O tombamento de seu centro histórico é uma ponte entre o passado e o futuro”, explica.

Marcelo Freitas fala sobre o livro ‘A Construção do Tombamento’ (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Tombamento histórico de Pitangui e o documentário

Pela ocasião dos 20 anos do debate público sobre o tema, Marcelo Freitas voltou a investigar o caso e apresentou o resultado no documentário “A Construção do Tombamento”, dirigido por ele e lançado em 26 de setembro no YouTube (assista à íntegra logo abaixo). O filme faz um balanço do que significou, ao longo das duas primeiras décadas, o processo de tombamento do centro histórico pitanguiense.

Trecho de abertura do documentário (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

De acordo com o autor, a nova produção abre uma discussão sobre as medidas que deveriam ser adotadas para que a preservação do patrimônio histórico da cidade seja um fator de incentivo ao turismo e de geração de emprego e renda para Pitangui.

“Trata-se de um assunto que eu gostaria que fosse discutido na cidade, pois é um desafio e tanto: como fazer com que o centro histórico tombado se transforme em uma fonte de geração de emprego e renda na cidade, o que não acontece hoje”, destaca Marcelo.

Olhares

Como peça jornalística em formato documental, a narração na voz do idealizador contextualiza o público sobre as ligações dele com o município.

“Foi aqui que meus pais nasceram e era essa a cidade em que eu, quando criança, passava minhas férias. Por isso lembro-me muito bem de Pitangui quando ainda havia o trem de ferro e várias ruas eram de terra. Ao longo de todos esses anos, também assisti à penosa derrubada de casarões e sobrados. Foi uma derrubada silenciosa, embora algumas vozes tenham se posicionado contra”.

Durante algum tempo, no início dos anos 2000, Marcelo ficou sem ir a Pitangui. Quando voltou, teve uma inesperada e agradável surpresa: ao andar pelas ruas da cidade, viu que os casarões antigos que resistiram à derrubada estavam todos lá, do mesmo jeito que antes. Alguns até com pintura nova.

“Não havia, com raras exceções, edificações históricas em ruínas, como cansei de ver durante muito tempo. Foi aí que eu pude entender melhor o que foi o tombamento e seu impacto sobre o patrimônio histórico”, conta.

Vista aérea de parte da região tombada (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Etapas do tombamento do Centro Histórico de Pitangui

O tombamento do Centro Histórico de Pitangui deu-se em duas etapas. A primeira foi a provisória, em 2004. A segunda, definitiva, em 2008.

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A área tombada é composta por três praças e uma rua. Na praça Getúlio Vargas está a imponente Matriz de Nossa Senhora do Pilar, construída em estilo neogótico e aberta ao público em 1921.

Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar e arredores (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Na mesma praça, que também é conhecida como Praça da Matriz, estão também o chafariz, de 1833, e o Fórum, em estilo Eclético dos anos de 1920.

Prédio do Fórum e arredores (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

O segundo conjunto tombado é a praça Governador Benedito Valadares, na qual se destacam as casas em estilo eclético do início do século passado e algumas edificações do período Barroco.

Praça Governador Benedito Valadares e arredores (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

O terceiro conjunto tombado é a praça Isauro Epifânio. Nela estão a igreja de São Francisco, algumas residências e o prédio da Escola Estadual Francisca Botelho, em estilo Normando.

Escola Estadual Francisca Botelho (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Também faz parte do Centro Histórico a rua Padre Belchior. Nela está o sobrado do referido religioso e que atualmente abriga a Prefeitura.

Casarão de padre Belchior (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Impactos

Para ilustrar os impactos, o documentário apresenta pontos de vista de representantes de setores bastante ligados ao caso, como comércio, arquitetura, turismo e governo municipal. A primeira entrevistada é a arquiteta Bruna Caldas, que destaca a importância do processo, mesmo que tardio.

Bruna Caldas, arquiteta (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

“Pela importância que Pitangui tem para Minas Gerais e para o Brasil, deveria ter sido reconhecido muito antes. Isso fez com que a gente perdesse muitos exemplares da nossa arquitetura e, consequentemente, um apagamento da nossa história. Em 2004, quando foi feito o tombamento provisório, foi um marco importante porque a gente conseguiu resguardar o que nos restou. Hoje a gente garante esse direito de ter a nossa história e memórias reservadas para a gente e para gerações futuras”.

Emilcio Vilaça, advogado, diz que o tombamento é feito para que a sociedade tenha o conhecimento do passado, entenda seu presente e planeje o futuro.

Emilcio Vilaça, advogado (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

“Tombamento não tem fim em si mesmo. Tombar por tombar”.

O turismólogo Leonardo Morato sugere a promoção de iniciativas pensadas para quem visita a cidade para conhecer os conjuntos tombados.

Leonardo Morato, turismólogo (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

“Fazer com que a cidade colha benefícios com o tombamento é desenvolver o turismo cultural, favorecendo os patrimônios locais. Não só o patrimônio físico e material – casarios – como também as tradições – festas, costumes e modos de fazer e saber – que são transmitidos de geração a geração. Realizar pequenos eventos para povoar o Centro Histórico. Trazer pessoas de fora para vivenciarem Pitangui. A partir do momento em que a gente cria motivos de visitação, isso vai se firmando, criando tradições, novos negócios vão se gerando e isso vai cada vez mais fortalecendo a ideia do tombamento – não só como um ato jurídico, mas como uma coisa continuada”.

Efeitos colaterais

O tombamento cumpriu seu objetivo principal, de impedir a derrubada dos imóveis históricos. Porém, nessa trajetória de 20 anos, alguns problemas começaram a aparecer.

“Se por um lado a gente teve essa garantia do direito a ter nossa memória preservada, também houve um distanciamento da população no geral com aquele patrimônio”, acrescenta Bruna Caldas.

O arquiteto e ex-prefeito de Pitangui, Evandro Rocha Mendes, fala da inesperada desvalorização.

Evandro Mendes, arquiteto e ex-prefeito (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

“Ao contrário do que se esperava, esse processo de tombamento do núcleo histórico motivou o esvaziamento populacional e econômico. Ao invés de agregar valor, depreciou esse espaço urbano”.

Emilcio Vilaça diz que tomou-se por tombar.

“No plano nosso foi de grande alegria. Porém, não vejo a implementação nas escolas. O próprio comércio da cidade, para aproveitar essa ideia do tombamento e gerar mais empregos, trabalho e renda para o município. Nós precisamos, dentro da permissão legal, da efetivação da dimensão maior do tombamento”.

Reconstrução

Evandro Mendes, em cuja gestão do Executivo municipal o tombamento ocorreu, agora diz que diante do quadro clínico é preciso repensar a decisão.

“A gente tem que discutir esse processo de tombamento. No núcleo histórico que se pretendia valorizar a gente observa uma crescente desvalorização, porque os proprietários passaram a ter um ônus a mais para manutenção, que tem de ser acompanhada por um profissional da área e tem que ser aprovada pelo Iepha-MG, mediante à ida do proprietário à sede do órgão, em Belo Horizonte”.

Além disso, ainda na avaliação do ex-prefeito, não houve compensação expressiva no sentido da limitação do direito de propriedade.

“Houve um cerceamento. Enquanto áreas que ficaram fora do núcleo histórico podem construir N vezes o valor da área do imóvel, na área tombada essa limitação existe. São imóveis praticamente abandonados, com o poder de venda reduzido e que vão sofrendo deterioração. Porque o maior mal para a preservação de um imóvel é o fechamento dele”.

Bruna Caldas destaca que a não participação da comunidade no processo de tombamento em ações de educação patrimonial geraram o efeito negativo de reconhecimento.

“A falta desse sentimento de pertencimento, de que aquilo é um patrimônio seu. Mesmo você não residindo ali naquele centro histórico, ele também é seu, porque é um patrimônio de todos”.

Revisão do tombamento do Centro Histórico de Pitangui

Ainda segundo Bruna Caldas, de tempos em tempos as diretrizes do tombamento precisam ser revistas.

“A cidade, como um organismo vivo que é, tem necessidades que vão se alterando ao longo do tempo. Até os valores que são atribuídos ao Centro Histórico podem ser alterados. Tem a ‘Carta de Burra’, que é uma recomendação feita em 2013 após uma conferência do Icomos (ONG ligada à Unesco que cuida de questões ligadas ao patrimônio histórico), que fala sobre um plano de gestão integrada. Parte do princípio de identificação dos valores e a partir disso pautar decisões para a gestão futura. A cada dez anos deveria-se voltar a esse plano e ver se as demandas ainda são as mesmas”, pontua.

Leonardo Morato sugere ações casadas para atrair público diferenciado para vivenciar o Centro Histórico.

“Entrar no comércio, comprar um artesanato. Para isso a gente precisa fortalecer a cultura do turismo. Ou seja: a produção associada para comercializar para quem vem de fora. Um exemplo de como aproveitar de forma mais efetiva o Centro Histórico a nossa variedade de estilos arquitetônicos: trazer turmas da UFMG e outras universidades para fazerem trabalhos de campo para vivenciarem e testemunharem como nosso patrimônio tombado é diferenciado”.

Maria José Valério Calderaro Teixeira, secretária municipal de Turismo, Cultura e Patrimônio, concorda que transcorridos 20 anos do tombamento, alguns ajustes se fazem necessários.

Maria José Valério, secretária municipal (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

“Os tempos são outros. A cidade se modernizou. Será necessária uma discussão mais ampla. Uma discussão pública para análise do tombamento em seus pormenores. A administração pública se empenha no que for melhor para a cidade e no que vai trazer o bem-estar a todos os cidadãos. Será importante também contar com o apoio do Estado para cursos que possam qualificar a mão de obra que vá atuar nesses imóveis tombados, assim como atrair também os investidores, empreendedores, que possam ver nos imóveis tombados, com incentivo do Estado, possibilidade de novos investimentos”.

Bastidor de gravação da entrevista feita com Maria José Valério, secretária de Turismo, Cultura e Patrimônio Histórico de Pitangui (Foto: Comunicação de Fato/Divulgação)

Evandro Mendes reforça a necessidade de rever o processo.

“Precisa urgentemente ser revisto. Porque se pensou numa coisa, para obter um resultado, e se obteve justamente o contrário: uma desvalorização dessa área. Existem mecanismos que podem reverter isso, no sentido de repovoar e dar valor econômico a essa área. Transformá-la em vetor de atração econômica, social e cultural. Todos os atores envolvidos devem participar. […] Dá tempo ainda. O que se pensou não deu certo. Apesar das boas intenções, não deu certo. Não está dando certo. Há tempo ainda de a gente mobilizar, discutir, conversar. Fazer o que não foi feito no início, para reverter isso. É possível? É possível”, conclui Evandro.

Ficha técnica

Além de ter direção, redação e narração de Marcelo Freitas, o documentário tem roteiro, fotografia, câmera e montagem de Maíra Cabral. Trata-se de uma ação realizada com recursos da Lei Paulo Gustavo, por meio da Prefeitura de Pitangui.