Uma das personalidades da cultura brasileira de maior projeção popular, Vinicius de Moraes, cujo centenário o país celebra neste sábado, foi muito mais do que o poeta de primeira linha e o letrista de músicas que há cinco décadas são executadas e regravadas em todo o mundo. O Poetinha, como ele mesmo – que cultivava os diminutivos como forma de carinho – gostava de ser chamado, foi um intelectual de múltiplas facetas.
Formado em direito e diplomata de carreira até ser aposentado compulsoriamente em 1969, pela ditadura militar, Vinicius foi também cronista e escreveu para jornais e revistas reportagens cheias de lirismo sobre as cidades onde viveu. Exerceu a crítica de cinema, com análises aprofundadas sobre filmes e cineastas dos anos 40 e 50, e foi um importante autor teatral.
Foi exatamente essa última faceta – a de dramaturgo – que motivou a aproximação do poeta, para quem a vida era “a arte do encontro”, com Antonio Carlos Jobim, em 1956. O encontro, fundamental na trajetória de ambos e um marco na cultura brasileira, aconteceu porque Vinicius estava à procura de um compositor para as músicas de sua peça Orfeu da Conceição, que pretendia encenar no Theatro Municipal do Rio.
Definida pelo autor como “tragédia carioca em três atos”, a peça é uma transposição da história do mito grego de Orfeu para uma favela do Rio de Janeiro. Escrito em 1954, o texto também estava sendo adaptado para o cinema, com o título de Orfeu Negro, pelo cineasta francês Marcel Camus. O filme, que ficou pronto em 1959, ganhou – como produção francesa – a Palma de Ouro do Festival de Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.
A parceria com Tom, iniciada com as canções para a peça – as mais conhecidas são Se Todos Fossem Iguais a Você e Lamento no Morro, deu início a um movimento de renovação da música popular brasileira. Dois anos depois, em 1958, com João Gilberto e a sua inovadora batida no violão, e o lançamento do LP Canção do Amor Demais, com Elizeth Cardoso interpretando composições da dupla, esse movimento, que começava a ganhar forma, logo iria ser chamado de Bossa Nova.
“Vinicius de Moraes foi um divisor de águas na história da música popular brasileira. Um poeta de livro que de repente se torna letrista e traz para as letras da música brasileira uma grande densidade poética”, define o crítico musical Tárik de Souza. Mais do que parceiros, Vinicius de Moraes colecionou amigos, companheiros de boemia e da vida cotidiana. A troca ia muito além das rimas e notas musicais.
Para Tárik, que apresenta na Rádio MEC FM o programa Bossamoderna, Vinicius exerceu um papel de catalisador na música popular, estimulando o surgimento de novos compositores. “Ele foi o primeiro parceiro do Edu Lobo, o primeiro parceiro do João Bosco, incentivou o Francis Hime e vários outros artistas a se dedicarem realmente à música, a partir de parcerias com ele. Vinicius tinha essa generosidade de lançar artistas e de abrir novas frentes, como ele fez com Toquinho, que foi o seu último grande parceiro”
É grande a lista. Além dos já citados, inclui Carlos Lyra, Baden Powell (que formavam, juntamente com Tom, o que o poeta chamava de sua “santíssima trindade”), Chico Buarque e muitos outros. Lyra, um dos integrantes da “trindade” de Vinicius, conta como foi seu primeiro contato com o poeta. “Liguei para a casa dele: ‘Vinicius de Moraes? Aqui é o Carlos Lyra”.. e ele, com aquela mania de diminutivos, respondeu: ‘Ah, Carlinhos, ouvi muito falar de você. O que você quer de mim?’ E eu: ‘quero umas letrinhas…’. E ele:’então venha já pra minha casa’. E aí começou a amizade e a parceria”.
Vinicius fez letras também para o clássico choro Odeon, de Ernesto Nazareth (1863-1934), e para duas composições de Pixinguinha (Lamentos e Mundo Melhor). Na área da música erudita, Cláudio Santoro e Edino Krieger tiveram versos de Vinicius para composições suas. A obra do Poetinha inclui ainda canções em que ele foi autor de letra e música, dispensando as parcerias, como Pela Luz dos Olhos Teus, Serenata do Adeus e Rancho das Flores. E poemas seus, publicados anteriormente em livros, ganharam música, como os sonetos da Separação, musicados por Tom Jobim, e da Fidelidade, pelo pernambucano Capiba. O poema Rosa de Hiroxima ganhou nos anos 70 música de Gerson Conrad, líder da banda Secos e Molhados, de estrondoso sucesso na época em que lançou o cantor Ney Matogrosso.