Quando o amor vira sentença; mulheres vivem a violência dentro de casa e são condenadas à morte por quem prometeria protegê-las
“Eu quase morri. Mas a morte já tinha me visitado antes, cada vez que ele me batia e dizia que a culpa era minha.” Essa frase é da diarista Luciana, 45 anos, moradora de Divinópolis, na Região Centro-Oeste de Minas. Vítima de violência doméstica, ela carrega no corpo e na alma as cicatrizes deixadas por um casamento que deveria ser porto seguro, mas se transformou em prisão, dor e quase morte.
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Luciana não é um caso isolado. É uma entre milhares de mulheres que, diariamente, vivem sob o domínio do medo, dentro do próprio lar, ao lado de quem, um dia, prometeu amor eterno.
É o retrato de uma tragédia silenciosa, que cresce nos bastidores da rotina, onde os gritos são abafados pelas paredes e as agressões são maquiadas com desculpas esfarrapadas, roupas de manga longa e sorrisos forçados.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 1.463 feminicídios em 2024. Isso representa uma mulher assassinada a cada 6 horas.
A maioria dessas mortes ocorreu dentro da própria casa, e o autor do crime foi, na maior parte das vezes, o parceiro ou ex-parceiro da vítima.
Em outras palavras: o casamento, que culturalmente carrega a promessa de “felizes para sempre”, tornou-se, para muitas, o palco do próprio fim.
Violência doméstica: Um ciclo que começa com palavras
A violência doméstica raramente começa com um tapa. Antes da mão que agride, vem a voz que humilha. O controle disfarçado de cuidado. A crítica que se repete. A proibição disfarçada de zelo.
“Primeiro ele dizia que a roupa era curta. Depois, que meus amigos não prestavam. Um dia, me mandou escolher entre ele ou o meu trabalho,” relata Luciana
“Quando dei por mim, já não saía mais de casa, não via mais minha família. Ele controlava até meu celular. E depois vieram os empurrões, os tapas, as ameaças.”
Esse padrão se repete em milhares de histórias. O ciclo da violência se alimenta da culpa da vítima, da esperança de mudança e da pressão social que ainda cobra da mulher a manutenção da família “a qualquer custo”.
Além disso, dependência emocional, financeira e até religiosa aprisiona. Muitas mulheres são levadas a acreditar que suportar a violência é parte do “sacrifício” do casamento. Que denunciar é fracassar.
A cultura da culpabilização
Em entrevistas com vítimas e especialistas, um ponto em comum se destaca: a solidão. Além disso, muitas mulheres, quando tentam romper o ciclo da violência, encontram resistência até mesmo dentro da família.
“Minha mãe dizia que era só uma fase. Minha sogra dizia que ele me batia porque me amava demais. Um dia, ele quase me matou, e aí todos fingiram surpresa,” conta Luciana*, que hoje vive com medida protetiva há mais de dois anos e ainda teme sair na rua.
A cultura da culpabilização transforma a vítima em ré. As perguntas não são “por que ele a agrediu?”, mas sim “por que ela não saiu antes?”, “o que ela fez para provocar?”, “será que não exagerou?”.
Além disso, essas narrativas fortalecem o agressor e fragilizam a mulher.
“A violência doméstica é sustentada por uma estrutura social que naturaliza o machismo, banaliza a agressão e responsabiliza a vítima,” explica a psicóloga Mariana Rios, que tem um trabalho voltado para atendimentos a mulheres vítimas de agressão .

O silêncio que mata
Muitas vezes, o grito não sai. E quando sai, não é ouvido. Segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mais de 60% das vítimas de feminicídio nunca registraram boletim de ocorrência. Além disso, outras chegaram a denunciar, mas foram ignoradas ou desacreditadas.
“Eu denunciei três vezes. Ele foi chamado, assinou um papel e voltou pra casa. Na quarta vez, me bateu na frente dos meus filhos,” diz Luciana
Além disso, a negligência institucional é parte do problema. Faltam profissionais capacitados, abrigo para mulheres ameaçadas, estrutura para garantir segurança após a denúncia.
“Temos leis, como a Maria da Penha, mas temos uma Justiça lenta, um sistema e um Estado que não garante proteção real,” afirma Mariana Rios.
A urgência do enfrentamento à violência doméstica
O combate à violência doméstica exige uma rede de apoio real: emocional, jurídica, social. Além disso, requer a presença de um Estado ativo e de uma sociedade que pare de se calar.
“Um vizinho que ouve gritos e não denuncia é cúmplice. Uma amiga que diz ‘ele te ama, só está nervoso’ perpetua o ciclo. A mudança precisa vir de todos os lados,” pontua a psicóloga Mariana Rios
Além disso, campanhas educativas, fortalecimento das delegacias da mulher, apoio psicológico e políticas públicas de acolhimento são parte da solução.
Mas a base está na educação: ensinar desde cedo que amor não dói. Que respeito não é favor. E que violência não se justifica, nunca.
As que ficaram e as que partiram
A dor das mulheres que morreram fica nas famílias. Nos filhos que viram tudo. Nos pais que enterraram filhas.
Nas irmãs que tentaram alertar. E nas sobreviventes que vivem com medo e culpa por terem conseguido escapar.
“Eu sobrevivi, mas nunca serei a mesma. Cada cicatriz me lembra o que vivi. E cada dia é uma batalha para me reconstruir,” confessa Luciana
Ela carrega no braço esquerdo a frase tatuada: “Eu mereço viver.” É uma resposta direta à promessa do altar. À frase que, durante séculos, romantizou a submissão: “Até que a morte nos separe.”