Arrumado, Aylan, o irmão mais velho Galip, a mãe Rehan e o pai Abdullah vão à praia. Mas, infelizmente, não para um passeio da família Kurdi. A alegria estampada numa foto antiga dos irmãos, sorridentes, ao lado de um urso de pelúcia, é uma memória do passado, um retrato de uma inocência infantil que ficou pra trás.

Douglas Fernandes

Aylan, três anos. A mãe apronta o filho mais novo com uma camiseta vermelho vivo e um short azul escuro. Nos pés, um par de tênis também escuros, talvez para combinar com o short ou talvez tenha sido o primeiro calçado que a mãe encontrou e teve tempo de colocar no caçula.

Arrumado, Aylan, o irmão mais velho Galip, a mãe Rehan e o pai Abdullah vão à praia. Mas, infelizmente, não para um passeio da família Kurdi. A alegria estampada numa foto antiga dos irmãos, sorridentes, ao lado de um urso de pelúcia, é uma memória do passado, um retrato de uma inocência infantil que ficou pra trás. Agora, só resta o medo, a insegurança e, talvez, no fundo, uma ponta de esperança para a família Kurdi, que tenta escapar do terror da guerra civil na Síria.

Apesar dos poucos anos de vida (Galip estaria hoje com 5 anos), os irmãos certamente tiveram poucos momentos de alegria ou tranquilidade. Na última quarta, dia 2, eles, juntamente com os pais, se viram obrigados a tomar um bote com mais 15 pessoas se quisessem encontrar uma nova chance de recomeçar a vida longe das mortes e destruição que se instaurou no seu lar.

Hoje, da família, somente Abdullah guardará na memória a imagem dos filhos ao lado do urso de pelúcia.

Para o restante do mundo, fica a imagem do corpo do pequeno Aylan, com sua camisa vermelha e seu short azul, combinando com o par de tênis escuros. Ele estará lá, inerte, de bruços, na praia de Bodrum. Seu rosto não está visível, encravado na areia escura e sem vida da praia turca. E agora o pequeno Aylan estará para sempre eternizado nessa imagem, juntamente com outras vítimas da guerra e dos conflitos mundiais, como a vietnamita queimada por napalm e fotografada por Nick Ut; o abutre à espera da morte da criança negra africana, fotografado por Kevin Carter; o instante da morte de um miliciano espanhol, fotografada por Robert Capa; ou ainda, a truculência dos militares contra um manifestante fugindo às presas, registrada pelas lentes de Evandro Teixeira.

Sou pai. Minha filha tem quase a idade da Aylan e quando vejo a foto dele sorrindo ao lado do irmão e em seguida, vejo o mesmo Aylan sem vida e sozinho, mentiria se dissesse que não me dá um nó na garganta. Imagino o desespero dele quando o bote virou. A tentativa angustiante de tentar gritar pela mãe e pelo pai, mas ao abrir a boca, sentir o gosto da água salgada do mar, que no final, inundou seus pequenos pulmões.

Sou fotógrafo. Sei que imagens, as imagens de verdade, são aquelas capazes de registrar um instante decisivo, como bem definiu o francês Cartier-Bresson. Não há produção, não há direção, não há pós edição. Há um momento único que consegue condensar toda uma situação em uma única imagem, clicada pelo fotógrafo.

Sou jornalista. Por formação e por paixão. E por mais que me doa ver o corpo de uma criança sem vida, morta nas piores circunstâncias, ainda acredito que determinadas realidades só se tornam reais, quando são reveladas. A guerra civil na Síria não é um conflito recente e faz parte do que considerado a maior crise de refugiados do mundo. A família Kurdi era da cidade de Kobane, local onde aconteceram violentas batalhas entre militantes extremistas muçulmanos e forças curdas. Eles fugiram, assim como outros milhares de refugiados, buscando um lugar seguro em algum ponto da Europa.

A morte de Aylan, uma entre centenas de outras, inclusive crianças, ganhou proporções muito maiores do que somente a perda de vida do caçula Kurdi. Ao ser fotografado pela DOGAN NEWS AGENCY / EFE, sua morte estampou vários dos mais importantes jornais mundiais. A Folha de São Paulo, inclusive, publicou um pequeno artigo para justificar o uso de uma foto tão impactante: “Não nos compete suavizar a realidade, mas sim retratá-la com precisão”.

Segundo o site Terra, no início da semana, a Guarda Costeira turca disse que, apenas nos primeiros cinco meses de 2015, 42 mil pessoas foram resgatadas no Mar Egeu. Na semana passada, foram mais de 2 mil. Na mesma quarta-feira (2) em que Aylan morreu, 100 pessoas foram resgatadas, também tentando atravessar da Turquia para a ilha grega de Kos.

A foto tem contexto e justificativa para ser utilizada e é fácil perceber que depois dela, as decisões políticas, as manifestações da sociedade civil e a cobertura midiática envolvendo os conflitos na Síria tem ganhado novas proporções. Aylan, por bem ou por mal, revelou uma realidade que para muitos, parece ficção. Mas ao ver o corpo frio e sem vida na praia, sendo observado por um policial, incrédulo com a cena, é como dar um tapa na cara da sociedade.

A história de Aylan já ganhou repercussão e nessa quinta, a Reuters divulgou um vídeo dramático onde policiais turcos obrigam imigrantes a descer de um trem, para leva-los para um campo de refugiados e então são obrigados a retirar à força um pai, uma mãe e uma criança de colo que estavam tão aterrorizados, que não queriam ir pra outro local que não fosse seguro.

As guerras sempre ocuparam e sempre vão ocupar um destaque no jornalismo, porque sempre vão se manifestar como acontecimentos fora do rotineiro. Fora do normal. E essa loucura precisa ser revelada em sua plenitude para que algo possa ser feito à respeito. Não digo que a situação será resolvida só porque a foto foi divulgada, mas que haverá mudança de comportamento em algum grau, isso é fato.