O que esperar da “CPI da Estética”? Márcio Almeida analisa narrativas feitas a respeito do papel do governo no episódio envolvendo a morte de uma paciente na clínica da biomédica
Márcio Almeida *
Está em andamento na Câmara Municipal de Divinópolis a proposta de se criar comissão parlamentar de inquérito para investigar as condutas da vigilância sanitária no episódio em que uma paciente — Íris Doroteia do Nascimento Martins, de 46 anos — teve uma parada cardiorrespiratória durante procedimento a que havia se submetido na clínica de estética mantida na cidade sob a responsabilidade da biomédica Lorena Marcondes.
Conforme a mídia divulgou, a paciente veio a falecer no Complexo de Saúde São João de Deus, para onde tinha sido levada pelo Samu. No dia 8 de maio, quando a recebeu, a clínica estava sem alvará sanitário, negado pela vigilância sanitária em razão de fatos anteriores, mas seguia em funcionamento regular.
Esclarecer a conduta da vigilância sanitária, na CPI ou em outras instâncias de investigação, implicará vários pontos, mas eles convergem forçosamente para duas questões-chave: quais informações estavam disponíveis para a vigilância sanitária a respeito da clínica antes de 8 de maio e o que foi feito a partir dessas informações.
I – As informações disponíveis e as ações realizadas
Não faltou a nenhum membro da atual administração municipal oportunidade de obter informações sobre a clínica de estética da biomédica Lorena Marcondes. O estabelecimento apareceu por diversas vezes em público, seja em redes sociais, seja na mídia. Foi divulgado, por exemplo, que a clínica recebeu da Câmara Municipal homenagem proposta pelo então vereador e hoje deputado estadual Eduardo Azevedo, irmão do prefeito Gleidson Azevedo, em razão daquilo que o parlamentar julgou serem bons serviços prestados à sociedade divinopolitana.
Também se divulgou que outro irmão do prefeito, o atual senador Cleitinho Azevedo, compareceu a uma festa em comemoração do aniversário da biomédica, na qual teria, aliás, cantado. Documentadas em texto e imagens, extraídos inclusive de redes sociais em que foram postados por iniciativa daqueles que aparecem nas divulgações, essa afinidade política e essa amizade familiar não foram contestadas até aqui nem pelo prefeito Gleidson, nem por qualquer membro de sua família ou de sua administração.
Se a biomédica é bem conhecida da família do prefeito e de seus colaboradores mais próximos, já que eles têm acesso à mídia e a redes sociais, ainda mais o é seu histórico enquanto prestadora de serviços na área da saúde.
Tal histórico inclui o episódio em que uma paciente de Divinópolis, ao reclamar do atendimento que havia recebido na clínica, foi vítima de uma tentativa de agressão por parte da profissional, documentada em câmera de vídeo instalada no prédio onde funciona seu estabelecimento.
Esse histórico inclui ainda o caso de um paciente — Eduardo Luiz Santos Júnior — que teve sequelas labiais de um procedimento estético realizado por Lorena e acionou a polícia, a justiça e os órgãos de fiscalização. Tendo aparecido em postagens de redes sociais, assim como em divulgações de veículos de mídia, os dois episódios estão baseados em documentos que tiveram ampla repercussão em Divinópolis.
Histórico
Se se imaginar, por mero raciocínio hipotético, que os gestores da saúde se encontrassem vivendo os últimos anos dentro de uma bolha informacional à qual não chegassem as sucessivas notícias da mídia e das redes sociais sobre a clínica, ainda assim seria impossível não terem tido conhecimento prévio do seu histórico funcional enquanto estabelecimento classificado como de interesse da saúde e, nessa condição, sujeito à ação fiscalizadora do poder público municipal.
Até 8 de maio, data em que Íris Nascimento entrou em parada cardiorrespiratória enquanto era submetida a um procedimento que está agora sob investigação policial, esse histórico incluía uma interdição da clínica em junho de 2021 em razão de irregularidades constatadas pela fiscalização da vigilância sanitária.
Na ocasião, como informado em nota divulgada no dia 9 de maio pelo setor de comunicação da Prefeitura, os fiscais constataram a presença de materiais e manuais para a realização de procedimentos cirúrgicos, como otoplastia e rinoplastia, aos quais a biomédica não estava autorizada em razão de sua formação.
Os fiscais também conseguiram de pacientes a confirmação de que eles tinham se submetido a esses procedimentos na clínica. Em outubro do mesmo ano, depois de os fatos terem sido relatados pela vigilância sanitária ao Conselho de Biomedicina, a clínica obteve alvará de funcionamento para procedimentos minimamente invasivos.
A validade do documento terminou um ano depois, em 5 de outubro de 2022. Visitado três dias depois por dois fiscais da vigilância sanitária — José Anastácio de Paula Júnior e Ricardo Soares — responsáveis pela inspeção necessária à renovação do alvará, o estabelecimento não conseguiu o documento em razão de serem necessárias adequações.
Para realizá-las, nos termos de um relatório produzido pelos fiscais da vigilância sanitária (Relatório de Inspeção 409/2022), a clínica recebeu prazo de 30 dias. Neste ponto os trâmites para a renovação do alvará deixaram de conter apenas adequações solicitadas pelos fiscais com base na legislação e passaram a incluir uma ordem muito mais grave de considerações.
Isso ocorreu porque, após a inspeção, a vigilância sanitária recebeu denúncia referente à clínica quanto ao paciente que teve sequelas decorrentes de um procedimento invasivo ao qual a profissional não está autorizada.
Junta de Julgamento
O que se seguiu, da parte do corpo de servidores da vigilância sanitária, é um exemplo de boa prática funcional feita com técnica e com ética no interesse da saúde pública. Recebida a denúncia, a vigilância sanitária lavrou no dia 15 de março de 2023 um termo de intimação da clínica, exigindo que ela apresentasse, em 24 horas, cópia do prontuário referente ao atendimento do paciente que teve sequelas decorrentes do procedimento a que se submeteu em suas dependências (Termo de Intimação 3454/A2).
Intimada a fornecer o documento que permitiria às autoridades sanitárias avaliar o risco trazido por seus procedimentos, avaliação obviamente indispensável para se julgar a possibilidade de ela ser mantida aberta pelo poder público, a clínica não o entregou no prazo fixado.
Fazendo uso de disposição presente no Código Sanitário Municipal (Lei Complementar 30/95), o estabelecimento optou por protocolar na Diretoria de Vigilância em Saúde um pedido de dilatação do prazo para fornecer a cópia do documento e, por conseguinte, do prazo para cumprir as exigências necessárias à obtenção do alvará sanitário (Protocolo 14.512, de 20 de março de 2023).
Nos termos da legislação vigente, o pedido foi encaminhado à Junta de Julgamento da Saúde, que se mostrou francamente contrária à dilatação do prazo (Parecer de 23 de março de 2023, assinado pelos servidores Tatiane Maria de Freitas e Ronny Marinho). Redigido em termos claros, o texto é outra demonstração cabal de bom desempenho no serviço público. Nele os dois servidores rechaçaram a possibilidade de autorizar o funcionamento da clínica enquanto não fosse fornecido o documento e apurada a denúncia, deixando claro o “possível risco sanitário até que se julgue sua improcedência”. E acrescentaram uma breve mas valiosa aula de legalidade e ética na defesa do interesse público.
“Esta junta entende que a liberação do Alvará Sanitário, estando o fiscal consciente da possibilidade de risco descrita em tal denúncia, caracteriza crime de prevaricação do agente fiscalizador ao deferir tal documento”.
Assim, a clínica seguiu sem o alvará de funcionamento e sem fornecer o documento que lhe havia sido pedido para permitir à vigilância sanitária avaliar riscos relatados em uma denúncia grave.
A gravidade da questão foi textualmente reconhecida pelo parecer da Junta de Julgamento ao mencionar que o cumprimento, pela clínica, das adequações anteriormente exigidas “não concede ao estabelecimento o direito adquirido à obtenção do Alvará Sanitário”, pois, em razão da denúncia, “ainda existe a possibilidade de risco sanitário”. A advertência não poderia ser mais clara.
Tendo tido seu recurso negado pela Junta de Julgamento em termos que deixam claro o caráter indispensável da avaliação de risco de seu procedimento, a ser feita com base no prontuário do paciente sequelado, a clínica foi formalmente autuada pela vigilância sanitária no dia 18 de abril (Auto de Infração 502/A4).
Em nova demonstração de diligência e de correção no exercício de suas funções, os dois fiscais que assinam o auto — os mesmos que haviam ido à clínica em 8 de dezembro — destacam, entre as penalidades a que o estabelecimento passava a estar sujeito, nos termos do Código Sanitário Municipal, o item relacionado à interdição.
Ministério Público
Se já não havia dúvida quanto ao fato de que a clínica trazia risco potencial, sobretudo porque não forneceu o documento que permitiria às autoridades sanitárias avaliarem um precedente grave de sequela, a situação ficou ainda mais clara no dia 25 de abril, quando chegou à Prefeitura um ofício do promotor de justiça Sérgio Gildin (Recomendação 4, de 19 de abril de 2023). Exemplo lapidar de responsabilidade e zelo funcional para com o interesse público em situação que requeria ambos, a recomendação foi feita um dia depois de a fiscalização da vigilância sanitária ter lavrado o auto de infração decorrente do não fornecimento, pela clínica, do documento solicitado pelos fiscais.
Coube ao promotor informar às autoridades sanitárias que o estabelecimento continuava então “realizando atendimento e procedimentos estéticos invasivos, estando, assim, em desacordo com a legislação vigente”, acrescentando que tais procedimentos “trazem a possibilidade de ocorrências de riscos e complicações à saúde dos consumidores”.
Em seguida, relembrando às autoridades sanitárias o que elas têm obrigação funcional de saber, o promotor resgata textualmente o artigo 79 do Código Sanitário Municipal, do qual transcreve que “constitui infração sanitária instalar ou fazer funcionar estabelecimento de serviço de interesse da saúde sem licença do órgão sanitário competente ou contrariando normas legais e regulamentares pertinentes”.
Poder de polícia
A seguir, para que não restassem dúvidas aos gestores sobre o papel que deveriam desempenhar no episódio, Gildin dá outra oportuna aula de direito administrativo ao registrar que a vigilância sanitária “detém poder de polícia, o qual, dentre outras funções, deve ser destinado a impedir o exercício de atividades que ofereçam risco, bem como prejudiciais à saúde da coletividade”.
A lista de “considerandos” é finalizada com uma recomendação cristalina do promotor ao secretário municipal de saúde e à diretora de vigilância sanitária para que, de imediato, “adotem providências necessárias, por meio de seu poder de polícia, para controlar os riscos sanitários decorrentes da continuidade do funcionamento dos atendimentos e da realização de procedimentos estéticos invasivos pela clínica”. Também é solicitado, em prazo de dez dias, que os gestores informem as providências tomadas.
Novamente, como havia se dado com a Junta de Julgamento, não seria possível mais clareza e assertividade da parte do promotor ao mencionar que a clínica não poderia estar aberta para novos procedimentos enquanto não se tomassem todas as providências necessárias para evitar riscos.
A conclusão é a de que não faltaram às autoridades sanitárias todas as informações sobre o grave precedente de sequela de um paciente atendido na clínica. Não faltou também o alerta de que, ao deixar de fornecer o documento que permitiria avaliar o procedimento, a clínica trazia inegável risco potencial aos usuários. Não faltou, ainda, a menção explícita à faculdade que têm as autoridades sanitárias de usar seu poder de polícia para fazer com que cesse esse risco. Nem faltou, por fim, um explícito pedido de providências “imediatas” feito pelo promotor, que praticamente implora por medidas efetivas em sua recomendação.
Resposta
A essa recomendação, porém, as autoridades sanitárias responderam com um ofício em que pedem prazo de trinta dias para informar as providências tomadas (Ofício 239/2023, da Semusa/Vigilância Sanitária). Sob a justificativa de que ainda não se havia esgotado o prazo legal de recurso à intimação facultado à clínica, o pedido é assinado pelo secretário de Saúde, Alan Rodrigo da Silva, e pela diretora de Vigilância em Saúde, Érika Camargos Ferreira. Também há a assinatura da supervisora de Vigilância Sanitária, Tatiane Maria de Freitas, que havia assinado o parecer da Junta de Julgamento apontando o risco de funcionamento da clínica enquanto não se apurassem os procedimentos que levaram um paciente a ter sequelas.
Na resposta ao Ministério Público, datada de 3 de maio, não há nenhuma palavra das três autoridades sobre as medidas que seriam tomadas para fazer cessar o risco já amplamente conhecido. Cinco dias depois, Íris Nascimento sofreu parada cardiorrespiratória enquanto era submetida a um procedimento invasivo na clínica, que continuava operando normalmente.
II – As escolhas feitas e suas consequências
O relato das informações a respeito do histórico funcional da clínica da biomédica Lorena Marcondes disponíveis para as autoridades sanitárias antes de 8 de maio deixa evidente que as investigações a serem realizadas na Câmara Municipal e em outros âmbitos precisam fazer uma distinção entre papéis operacionais e papéis políticos. Aqueles são feitos de procedimentos, enquanto estes se compõem de escolhas feitas pelos gestores dentro das margens e possibilidades da lei.
Os procedimentos, todos eles documentados em relatórios e autos, não oferecem dificuldades de entendimento, até porque são pautados em passos já previstos na normatização. As escolhas, por sua vez, implicam avaliar o que foi e o que deixou de ser feito.
Até aqui, as divulgações feitas pela administração municipal a propósito das providências tomadas seguem diferentes linhas argumentativas.
Elas têm em comum a evidente estratégia de desconsiderar alertas de risco sanitário constantes dos documentos produzidos pela Junta de Julgamento e pelo Ministério Público e misturar o que é procedimento operacional e o que é decisão política, tentando estabelecer junto à opinião pública a narrativa segundo a qual foi feito no tempo adequado tudo o que poderia ser feito e do único modo como se deveria fazer para impedir que um fato como a morte de Íris Nascimento ocorresse.
Essa narrativa inclui alegações como as de que não haveria motivos para a interdição anteriormente à morte de Íris, já que os fiscais não constataram risco sanitário na clínica.
Outra alegação, que complementa a anterior, é a de que os fiscais têm total autonomia para agir conforme a legislação vigente, sem que se faça a respeito de seu trabalho nenhuma ingerência política, que constituiria improbidade administrativa.
Em outra alegação, que segue na mesma direção, um dos assessores do prefeito Gleidson sustentou que atos irregulares não são feitos diante da fiscalização, que não poderia, por conseguinte, prevê-los.
Exemplo clássico da estratégia de afirmar apenas a parte da verdade que convém ao momento, essas alegações tentam vender à opinião pública a ideia de que uma clínica com precedentes reiterados de procedimentos invasivos feitos por profissional não habilitada para tanto, um deles com grave intercorrência denunciada à vigilância sanitária, não representava risco.
Nesta interpretação da lei, feita contra a saúde pública e a favor do interesse particular da biomédica, tenta-se, afinal, estabelecer a narrativa de que não haveria escolha para a conduta que a administração municipal adotou a respeito da clínica ao permitir que ela continuasse aberta e recebendo clientes para novos procedimentos. Assim, os procedimentos operacionais realizados seriam os únicos que a gestão de saúde, entendida como tomada de decisões, poderia ter determinado que se fizessem.
Operacional x político
A sequência dos fatos mostra, entretanto, que não se confundem no episódio da clínica o que é operacional e o que é político. De fato, ambos os aspectos são claramente distintos. Isso ocorre porque procedimentos operacionais — como relatórios de inspeção e autos de infração e intimação — não são fins em si mesmos e sim a base para as escolhas políticas, que deveriam ser feitas para minimizar riscos.
Assim, nenhuma norma implicada no episódio, em especial as disposições do Código Sanitário, dispensa interpretação à luz dos fatos, do bom senso e da razoabilidade. E nenhuma delas contém a indicação de que a administração não poderia agir de modo diferente daquele como efetivamente agiu. Foi o que disseram, em raciocínio claro, tanto a Junta de Julgamento quanto a recomendação do promotor Sérgio Gildin, baseadas ambas não só na gravidade do precedente e na impossibilidade de avaliá-lo por falta de documento negado pela clínica, quanto no poder, que é também dever, de os gestores municipais agirem de imediato na defesa da saúde pública.
Fazendo escolhas
Neste ponto fica claro que houve, efetiva e incontestavelmente, escolhas feitas pela administração do prefeito Gleidson em relação à clínica a partir das constatações realizadas pela vigilância sanitária e das informações vindas de outras fontes, como o Ministério Público.
A primeira escolha ocorreu após o recebimento, pela administração municipal, da denúncia de que um paciente havia ficado com sequelas decorrentes de um procedimento invasivo ao qual a profissional da clínica de estética não está autorizada. Usando seu poder de polícia, explicitamente mencionado no parecer da Junta de Julgamento, e considerando a gravidade da denúncia, amplamente midiada, a administração poderia ter interditado a clínica ainda em meados de março, como já havia feito em 2021 por razão igualmente grave relacionada a procedimentos a que a profissional não está autorizada.
Não foi essa, entretanto, a sua opção. E a clínica seguiu aberta nas semanas seguintes para atender novos clientes e realizar mais procedimentos, cujos riscos não foram avaliados pelas autoridades sanitárias, que, sem ter ainda acesso aos fatos, fizeram a aposta consciente de manter abertas as portas de um estabelecimento já denunciado em razão de um precedente grave.
A segunda escolha da administração municipal ocorreu em abril, quando, tendo ido à clínica em busca do prontuário do paciente sequelado, a fiscalização da vigilância sanitária voltou de lá sem o documento e foi obrigada a lavrar um auto de infração. Tendo tido ciência do não fornecimento do prontuário, que impediu as autoridades sanitárias de terem acesso a informações indispensáveis para determinar o risco sanitário dos procedimentos realizados pela biomédica Lorena Marcondes, a administração poderia ter interditado o estabelecimento, nos termos das penalidades previstas no Código Sanitário Municipal.
Não foi essa, novamente, a opção dos gestores. E a clínica seguiu ainda uma vez aberta para novos clientes e mais procedimentos, agora com o agravante de que, além de ter sido denunciada por fato já em si grave, ela se negou a fornecer documentos que lhe haviam sido pedidos pelas autoridades sanitárias para apurar o procedimento e, por conseguinte, resguardar a saúde pública. Porém, nem esse agravante demoveu a administração municipal do firme propósito de, contra todas as evidências de perigo — constatadas, repita-se, pela Junta de Julgamento — manter abertas as portas do estabelecimento.
Perfurações
E foi assim, na posição de inabalável defensora da clínica, que a administração fez sua terceira escolha decisiva no episódio. Ela ocorreu após o recebimento da recomendação do Ministério Público sobre o estabelecimento. Depois de os servidores da Junta de Julgamento terem deixado claro o risco de a clínica ser mantida em funcionamento regular, coube ao promotor, como se registrou acima, informar que o estabelecimento continuava então “realizando atendimento e procedimentos estéticos invasivos, estando, assim, em desacordo com a legislação vigente”, acrescentando que tais procedimentos “trazem a possibilidade de ocorrências de riscos e complicações à saúde dos consumidores”.
Também lhe coube um apelo explícito, baseado em disposições da legislação, por providências imediatas que fizessem cessar o risco sanitário. Ainda neste caso, os gestores assumiram conscientemente o risco e optaram por não interditar a clínica onde, dias depois, Íris Nascimento sofreu uma parada cardiorrespiratória durante um procedimento invasivo em que recebeu 12 perfurações no corpo constatadas em exame pericial realizado pela Polícia Civil.
Sangue
Ao fim e ao cabo, o mais caro advogado de defesa que a biomédica Lorena Marcondes pudesse contratar não faria melhor do que a administração do prefeito Gleidson para blindar seu estabelecimento, que recebeu dos gestores a interpretação da lei mais confortável possível, ainda que isso implicasse, como implicou, expor a risco a saúde pública.
Em qualquer administração pública minimamente comprometida com a legalidade e a ética, o secretário de Saúde, a diretora de Vigilância em Saúde e a supervisora de Vigilância Sanitária já estariam afastados dos respectivos cargos, até porque detêm postos de comando e são, por conseguinte, capazes de influir em uma estrutura que vai ser agora objeto de investigação.
Não foi essa, entretanto, a opção da Prefeitura, que preferiu anunciar uma investigação da conduta dos servidores de base, por meio de uma sindicância interna. Curioso é que o anúncio da sindicância, feito no mesmo dia em que começou a mobilização para se criar uma comissão de inquérito na Câmara Municipal, veio depois de várias divulgações da Prefeitura segundo as quais os fiscais têm autonomia e gozam de plena confiança dos gestores. Ou seja: se os fiscais não fecharam a clínica, isso é com eles, não com seus superiores. E assim, investigando procedimentos operacionais já documentados e deixando de focar nas escolhas políticas feitas pelos gestores, a administração de Gleidson Azevedo vai tentando se afastar da poça de sangue surgida em torno da tragédia que deixou um marido viúvo e uma criança órfã.
- Márcio Almeida é analista político do Portal Gerais e escreve semanalmente neste espaço.
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