Saiba em detalhes argumentos da Mitra Diocesana em notificação; Instituto Histórico rechaça pedido

A Diocese de Divinópolis quer a posse de cerca de 40 imagens sacras que integram o acervo do Museu Sacro de Pitangui. O primeiro passo foi dado com o envio de um ofício via Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) ao Instituto Histórico de Pitangui (IHP), responsável pelo museu e que discorda da iniciativa.

O PORTAL GERAIS teve acesso à íntegra da notificação, datada de 20 de dezembro de 2024 e assinada pelo advogado Constantino Barbosa. No texto ele argumenta não apenas em nome da Mitra Diocesana, como também da própria Paróquia de Nossa Senhora do Pilar, que é a de Pitangui e que pertence à diocese.

As considerações são:

  • Desde os anos 1970 este Instituto tem sob sua guarda bens sacros e imagens religiosas. No universo desses bens alguns estão identificados quanto à sua origem e outros não apontam sua procedência.
  • Dos bens identificados, a maior parte deles advém da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Pitangui, assim como de suas igrejas e capelas filiais, tendo outras origem na Paróquia de São Sebastião de Nova Serrana e capela filial, na Paróquia de São Sebastião de Leandro Ferreira, na Paróquia de Nossa Senhora das Dores de Camacho, na Paróquia de São Bento de Itapecerica, na Paróquia de Sant Ana de Onça do Pitangui e capela filial, na Paróquia do Divino Espírito Santo de Divinópolis, também Catedral Diocesana.
  • Não há conhecimento de nenhuma doação que a Igreja (Diocese de Divinópolis) tenha feito ao Instituto/Museu, pelo que deve-se considerar que este Instituto os tem a título ou caráter de empréstimo.
  • Os bens sacros e as imagens religiosas, a teor do Código de Direito Canônico […], somente podem ser objeto de disposição desde que haja o necessário consentimento do Conselho Econômico, do Colégio de Consultores e da Santa Sé, mesmo se fosse uma decisão do bispo diocesano, tudo isso por ação que deve ter início no âmbito interno da Diocese de Divinópolis.
  • Está sobejamente comprovado que os bens sacros e as imagens religiosas identificadas como oriundas das paróquias anteriormente citadas pertencem a templos religiosos. Este Instituto não poderá ser considerado proprietário, a menos que a alienação destas seja obtida junto à Santa Sé, conforme dito anteriormente.

Os bens em sua totalidade

  • Os bens, sejam os considerados em sua totalidade ou em sua parcialidade, a partir das informações obtidas no procedimento já anteriormente mencionado nesta notificação, não possuem tombamento em nível federal, fato que contraria a informação advinda do Município de Pitangui, segundo a qual todas as imagens constantes no relatório de restauração possuem tombamento federal realizado no ano de 1958.
  • Os mesmos bens mencionados no item precedente, também considerados em sua totalidade ou em sua parcialidade, igualmente a partir das informações obtidas no procedimento anteriormente mencionado nesta notificação e, principalmente, considerando a informação advinda do Iepha [Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico], segundo a qual os bens sob guarda desse Instituto não possuem tombamento a nível estadual.
Uma das imagens sacras do acervo (Foto: IHP/Divulgação)

Outros pontos

  • O processo de tombamento de imagens sacras iniciado pelo Município, e impugnado pela Mitra Diocesana, ao argumento da natureza da guarda e a quem realmente pertenciam, teve o seu rito comprometido não só por não ter ocorrido o seu desfecho, como também em razão da propriedade dos bens não restar esclarecida, ainda que o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural do Município de Pitangui tenha votado pelo tombamento definitivo e, em consequência, não ter havido a devida homologação, com a inscrição no(s) Livro(s) de Tombo respectivo(s), conforme o disposto na legislação municipal de proteção. Fatores que levam à conclusão de que não houve tombamento municipal das imagens – apenas o inventário delas.
  • Estando comprovada a propriedade da Igreja Católica Apostólica Romana, representada pela Diocese de Divinópolis, em relação aos bens cuja procedência foi identificada, urge que seja intentado um ajuste entre o Instituto Histórico de Pitangui para adequar a situação das peças identificadas.
  • É direito da Igreja Católica Apostólica Romana reivindicar o retorno dos bens sacros e das imagens religiosas ao seu local de origem, vez que eles tem sua finalidade cultural, litúrgica e devocional, devendo tal situação ser regulamentada por norma com valor jurígeno.
  • Se considera relevante ponderar sobre a necessidade de se celebrar um ajuste junto ao Instituto, para que este se comprometa a restituir qualquer item sacro do acervo sob sua custódia, após sua identificação, ao seu verdadeiro proprietário, tudo com a devida formalização.

Conservação

  • A Diocese de Divinópolis tem pessoas competentes para atuar, condições adequadas para tratar da matéria e duas Comissões que se empenham na conservação e preservação dos bens culturais, quais sejam, a Comissão de Bens Culturais e a Comissão de Arte Sacra.
  • No ano de 2029 a Diocese de Divinópolis completará 70 anos de existência e que pretende criar um Memorial com restauro e preservação dos bens sacros, imagens religiosas e documentos, tendo inclusive iniciado a organização do Arquivo da Cúria Diocesana de Divinópolis por empresa especializada em gestão e conservação patrimonial.
  • Na data de 8 de novembro de 2024, na sede da 2ª Promotoria de Justiça da Comarca de Pitangui, ficou estabelecido que a Diocese teria prazo para enviar cópia do protocolo de solicitação da Diocese ao Presidente do IHP acerca da devolução das imagens descritas neste procedimento (Laudo de Vistoria 19/2010) e dos livros antigos pertencentes à Matriz de Pitangui.
Detalhe de uma das imagens (Foto: TV Integração/Reprodução)

Pedido de devolução das imagens sacras

Após apresentar as considerações, o advogado diocesano pede:

“Notifica-se o Instituto Histórico de Pitangui para que, no prazo de 30 dias, a contar da data do recebimento da notificação, proceda a devolução dos bens sacros e das imagens religiosas que estão devidamente identificadas como oriundas das paróquias mencionadas nesta notificação, assim como dos livros antigos (registros de batizados, casamentos e óbitos e/ou Livro(s) de Tombo) pertencentes à Matriz de Pitangui ou a qualquer outra Paróquia que compõem a Diocese de Divinópolis, sob pena de, não o fazendo serem tomadas as necessárias medidas judiciais aplicáveis ao caso”.

O prazo de 30 dias terminou em janeiro e a situação segue em impasse.

História do IHP e imagens sacras

Casarão conhecido como casa de Joaquina de Pompéu foi a primeira sede do IHP (Foto: IHP/Divulgação)

Documentos guardados

A fundação do Instituto Histórico de Pitangui ocorreu em 5 de abril de 1968, quando o juiz de direito Geraldo Pinto de Souza descobriu documentos guardados sem os devidos cuidados nos porões do prédio do Fórum. Preocupado, ele resolveu proporcionar um tratamento adequado ao acervo. Dessa ideia nasceu o instituto, fundado por um grupo de 29 pitanguienses. Atualmente a Prefeitura ajuda a manter.

A instituição possui dois acervos. O primeiro deles é o documental, formado por papéis que compunham o antigo acervo judicial da comarca.

Prateleiras abrigam parte do acervo documental (Foto: IHP/Divulgação)

O outro é o acervo sacro, que, segundo levantamento publicado no site do próprio instituto, conta com 45 imagens de santos esculpidos em madeira. A maior parte delas do século 18.

Todas as 45 peças passaram por restauração na expectativa de que pudessem vir a ser expostas em 2015, ocasião dos 300 anos de Pitangui – o que não ocorreu porque não concluiu a restauração do prédio a tempo. Dentre essas imagens estava uma de São Francisco de Paula que a Diocese já conseguiu recuperar judicialmente (saiba mais logo abaixo).

Especialistas trabalham em restauro de imagens, em 2015 (Foto: IHP/Divulgação)

“A construção do acerco aconteceu ao longo dos últimos 40 anos, a partir da doação feita pela Paróquia de Pitangui de imagens e objetos religiosos que estavam nas igrejas e capelas do município. Um dos principais responsáveis pela montagem do museu de arte sacra foi o padre Guerino Valentino Pontello, que considerava mais importante as imagens estarem expostas em um local seguro, junto com as demais peças, do que nas próprias igrejas. A doação das imagens se deu principalmente durante seu período à frente da paróquia de Pitangui”, informa o órgão.

Instituto deverá lutar pelo acervo das imagens sacras

Presidente de instituto, historiador Vandeir Santos defende permanência do acervo sacro (Foto: IHP/Divulgação)

O historiador Vandeir Santos é presidente do IHP e discorda do pedido feito pela Diocese.

“Fomos notificados pelo MPMG de que o bispo de Divinópolis está querendo levar o nosso acervo sacro. Está com uma ideia de fazer um museu diocesano e cresceu o olho no nosso acervo”.

Para Vandeir, se houvesse um movimento popular por parte de moradores de Divinópolis ou de qualquer outra cidade de onde as imagens vieram, seria um sinal de que os fieis desejam as imagens em suas igrejas.

“Não há sequer uma única comunidade reclamando da falta de alguma peça sacra em sua igreja. Agora a Diocese quer todas elas? A imagem de Nossa Senhora das Dores, por exemplo, já sobreviveu a dois incêndios. Ela vai ficar no museu em Divinópolis? O pitanguiense que quiser conhecer a imagem vai pra lá? A Igreja vai pagar transporte para alguém de Pitangui ir a Divinópolis visitar a imagem? A ideia é absurda. Totalmente absurda”, diz Vandeir.

Trancadas em uma sala e envolvidas em plástico na antiga sede do IHP, peças sacras não sofreram danos durante incêndio em 2017 decorrente de um ataque a bomba na agência do Banco do Brasil (Foto: Paulo Henrique Lobato/EM/D.APress)

Outro ponto destacado pelo presidente do IHP é que as imagens não deveriam sair do município.

“Não me oponho a devolver as imagens à Igreja Católica, desde que elas não saiam de Pitangui. Se eles quiserem, por exemplo, transformar a casa paroquial em um museu, ótimo! Serei o primeiro a apoiar e a ir lá incentivar. Mas levar nosso acervo para Divinópolis, não. Disso aí a gente não tem como ser a favor”.

Ainda segundo Vandeir Santos, o Instituto Histórico se esforça muito para conseguir manter o acervo de imagens que a Diocese quer levar para Divinópolis.

“Isso me deixa muito chateado, porque o IHP exige muito da gente. O pitanguiense, de maneira geral, não está nem aí para o instituto. Quem gosta mesmo é que pega esse trabalho. Nós é que, aos trancos e barrancos, vamos tocando e com muito sacrifício. Aí vem outro de Divinópolis querendo levar nossas peças embora? Não é assim! Se no final o juiz mandar, quem sou eu para impedir? Mas, enquanto a gente puder lutar para manter o acervo aqui, vamos fazer isso”, finaliza Vandeir.

Acervo sacro restaurado para 2015

Um dos esforços lembrados por Vandeir foi a restauração de 45 imagens sacras em 2015, ano de tricentenário do município. Dentre elas estava a imagem de Nossa Senhora das Dores salva do incêndio na antiga Matriz da cidade, em 1914, e ainda a de Nossa Senhora da Penha, trazida por bandeirantes paulistas no século 17, quando houve a construção da primeira igreja da então vila, em homenagem à santa.

Restauradores durante trabalho no acervo em 2015 (Foto: IHP/Divulgação)

O conjunto de peças religiosas é um dos mais importantes do Brasil, pois é tombado pelo Instituto Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). À época, um estudo encomendado pelo MPMG também constatou a relevância dos objetivos para a memória mineira.

Historiador avalia aspectos de ambos lados

Israel Almeida, historiador e arquivista, fala em responsabilidade antiga de Pitangui com a proteção do acervo sacro (Foto: IHP/Divulgação)

O historiador e arquivista pitanguiense Israel Almeida, que integra a equipe responsável pelo acervo de documentos antigos do IHP, leu a notificação judicial.

“A Mitra Diocesana e a Paróquia de Nossa Senhora do Pilar exigem a reintegração de posse de todo o acervo sacro resguardado pelo IHP com base no Código Canônico da Igreja Católica. Existem peças que pertenciam a capelas e distritos que antes faziam parte da chamada Comarca de Pitanguy”.

Ainda conforme Israel, cabia a órgãos do município fazer a gestão de questões relacionadas à religiosidade local adotar decisões legislativas e judiciárias. Por causa disso, prossegue o especialista, peças sacras vindas de distritos que se emanciparam ao fim do século 19 e começo do 20 têm registros de que o acervo pertencente ao povo de Pitangui.

“A tentativa de reintegração de posse por parte da Mitra de Divinópolis é justa. Porém, deve ser feita com cautela, porque muitas das imagens que estão no acervo sacro sempre pertenceram a Pitangui. Como, por exemplo, anjos tocheiros que ficavam na igreja de São Francisco e imagens de santas como Nossa Senhora do Pilar, das Dores e da Penha, originais de Pitangui. Grande parte desse imenso material sempre pertenceu a Pitangui”.

Ainda conforme Israel, o município tem respaldo e responsabilidade históricos para lidar com o acervo. “À época não havia outra instituição em toda a região, inclusive em Divinópolis, que pudesse guardar esses bens. Então coube a Pitangui essa responsabilidade, justamente por meio do Instituto Histórico, que zela pelo resguardo da história e do patrimônio”, acrescenta.

Igreja de São Francisco de Assis, em Pitangui, abrigou parte das peças que integram o acervo do IHP (Foto: Ricardo Welbert)

Catálogo feito a pedido do MP serve de guia

O historiador destaca que o IHP possui um catálogo feito pelo próprio MPMG e que descreve em detalhes como autoria, tamanho e peso cada uma das imagens sacras e em quais fases de restauro elas se encontram.

“Existe um plano museológico, feito pela Secretaria de Turismo, Cultura e Patrimônio Histórico de Pitangui, justamente para mostrar à população, paróquia local e aos órgãos responsáveis pela gestão do patrimônio que as imagens têm uma importância sociocultural para a cidade e que a permanência delas aqui é algo relevante”, afirma.

Falta de espaço para museu ainda é entrave

Sede atual do instituto, na região central (Foto: PMP/Divulgação)

Embora o catálogo já exista, ainda falta ao IHP um lugar devidamente estruturado para expor o acervo sacro à população.

“Não adianta ter as coisas no papel e não colocar pra funcionar. A parte mais interessada nisso tudo, que é a população, não pressiona o poder público para que algo seja feito. A opinião popular é importante, principalmente para as pessoas saberem que esse acervo existe e foi resguardada ao longo dos séculos por Pitangui”, pontua Israel.

Ainda na avaliação do especialista, Pitangui tem justificativas históricas plausíveis para contra-argumentar com o pedido da Mitra Diocesana em prol da permanência das imagens sacras.

“Depois que esse caso for encerrado, poderemos exibir, de forma pacífica, essas peças em nosso município. Mas, além de medidas por parte da Prefeitura no que diz respeito à execução e à Câmara para fiscalização, precisaremos da participação da população, que neste momento não temos. A falta de posicionamento popular sobre o pedido de posse das imagens diz muito sobre o interesse público sobre o acervo, que no momento é zero, uma vez que a população não se movimenta”.

Diocese não pretende abrir mão das imagens sacras

Procurada pelo PORTAL GERAIS, nesta quarta-feira (12/3) a Diocese afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que segue dando seguimento aos trâmites para a recuperação das esculturas pertencentes ao acervo das paróquias, inclusive atendendo a orientações repassadas pelo Ministério Público do Patrimônio.

“Uma nova reunião já está agendada para 28 de março. Na ocasião, reforçamos o empenho de nosso bispo, Dom Geovane Luís, que é presidente da Comissão Para os Bens Culturais da Igreja do Regional Leste 2/CNBB, em reconhecer a importância desse tipo de iniciativa e não medir esforços para que o patrimônio histórico e artístico pertencentes às igrejas da Diocese retorne e receba os devidos cuidados”.

Caso precedente: imagem de São Francisco de Paula recuperada via Justiça

O ofício do advogado diocesano Constantino Barbosa cita ainda o fato precedente de houve a recuperação de uma imagem sacra pela via judicial.

“Já houve o retorno da imagem de São Francisco de Paula, co-padroeiro de Divinópolis à sua origem, assim como de um Livro de Tombo da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Pitangui. Nada impede que as peças ainda não identificadas continuem sob a tutela do Instituto a título de empréstimo, até que se identifique seu local de origem e procedência. O instituto se comprometeu a celebrar acordo de alienação, empréstimo ou devolução com a igreja proprietária do acervo”.

A imagem em questão é esta abaixo. Segundo o Arquivo Público da Prefeitura de Divinópolis, a peça é de madeira cromada e esculpida no século 18 em Ouro Preto (Igreja de São Francisco de Assis). É o objeto mais antigo da história de Divinópolis.

Imagem sacra de São Francisco de Paula (Foto: APD/Divulgação)