Quando Djalma pegou o contorno à esquerda, na rodovia 050, mal conseguia ver o enorme lago à sua frente. Eram 4h30 da manhã, o corpo estava bem desperto, para quem não dormia há quase 24 horas, mas a neblina cobria toda estrada e o velho teve que fazer os pneus cantarem para reduzir a uma velocidade segura – não adiantou, com visibilidade zero e com o caminhão carregado de ácido sulfúrico, ele levou o veículo até o acostamento.
Como ainda estava tudo escuro e pouquíssimos veículos passavam por ali naquele momento, ele sequer desceu do caminhão, fechou as janelas, puxou um cobertor na boleia e tentou fechar os olhos. Dormiu.
Lá em Goiânia, dona Úrsula já estava ficando louca. Todos os filhos estavam na sua casa.
– Não devíamos ligar pra polícia? – Sugeriu Humberto, o filho mais novo.
– Claro que não, a empresa tem o veículo rastreado via satélite e se isso for necessário, eles serão os primeiros a ligarem – afirmou Carlos, enquanto segurava seu recém-nascido.
Pablo e Lázaro se limitavam a ficar sentados, observando a situação. Às vezes um cochicho maldoso ao pé do ouvido do outro.
– Os puteiros de beira de estrada devem estar com promoção no pernoite – brincava Pablo, em tom quase inaudível com seu irmão Lázaro.
A verdade é que Úrsula estava em seu limite. Pressão alta, tremores de nervoso e chorava muito. Sem atender telefone, Djalma estava atrasado em uma semana na volta para a casa.
Jalminha, como era chamado desde criança, sempre foi apaixonado por veículos. Ainda menor, com 15 anos, juntou o dinheiro que ganhava trabalhando na plantação de sua mãe e comprou uma vespa e aos 20, já havia conseguido seu primeiro carro, um fusca com motor fundido que ele passou um ano arrumando. Nunca conheceu seu pai e sua mãe, dona Isaura, morreu poucas semanas após ele realizar o maior sonho dela: dá-la seu primeiro neto.
Isaura
Nunca casou, um escândalo na sua época. Filha de fazendeiros respeitados, ela viu num domador de cavalos, 25 anos mais velho, o pai de seus filhos, um marido, um amigo e seu porto seguro. Pouco teve disto tudo. Aos 14 anos, quando anunciou a gravidez, seu pai deu um “sumiço” no domador e a expulsou de casa. Nunca mais viu seus pais. Trabalhando na cidade como empregada, encontrou na casa de um casal de idosos sem filhos, o amparo para uma escolha precoce. Eles a ajudaram na gravidez, garantiram seu emprego e só a abandonou diante a morte, deixando a casa e algumas terras como herança. Com 20 anos e um filho de cinco, Isaura jamais se relacionou com alguém novamente, dedicou-se ao plantio de soja e café, acumulando dinheiro e prestígio nas redondezas. Todos queriam saber mais sobre aquela menina franzina, de olhos castanhos e cabelos lisos que andava sozinha por suas terras, mandando e desmandando com pulso firme.
Isaura era para todos um mistério, lendas de vários tipos eram formadas sobre sua vida. E ela adorava isto. Certo dia um vendedor de leite bateu à sua porta.
– Olá minha senhorita, estou querendo voltar para minha casa no norte e tenho apenas mais três galões para vender. A senhora me ajuda? – perguntou o vendedor forçando para parecer o mais miserável possível.
Deu certo.
– Coloque os galões na varanda – disse a garota rispidamente, sem ao menos perguntar o preço.
O vendedor era funcionário de Seu Almeida, um fazendeiro do outro lado da cidade que andava preocupada com o crescimento acelerado de terras que ele tinha como mortas e que jamais soube de quem eram.
– Linda casa. É sua mesmo? Onde estão seus pais? Que lindo garoto, é seu? – insistiu o vendedor com várias perguntas desenfreadas.
– Não, na verdade eu estava passando, vi a porta aberta e resolvi entrar, o menino trabalha aqui nos afazeres domésticos e meus pais estão presos no porão. Quer falar com eles? – falou a moça em tom sério.
O vendedor engoliu seco, pegou seu dinheiro e saiu em passos acelerados. Isaura era assim, para cada um que a indagava sobre sua vida, ela contava uma história mais absurda que a outra, isso gerou muitos boatos, a ponto de pessoas atravessarem a rua ao vê-la e o próprio delegado ir visitá-la.
– Não tenho nenhum mandato e muito menos alguma acusação formal, mas ando deveras preocupado com o que andam dizendo da senhorita. Estou aqui apenas como um visitante, esqueça meu cargo, me entende? – disse amistosamente o velho barrigudo, de longo bigode e calça caindo, de frente à varanda de Isaura.
– Tenho os documentos de todas minhas terras e da casa, tenho a relação de todos os funcionários e suas origens. Sei que dizem que sou um lobisomem, um fantasma, uma assassina, uma miragem. Adoro lendas senhor delegado, tanto que gostaria que você fosse embora e dissesse que me viu voando pela casa – sugeriu a garota quase rindo.
O velho gordo coçou a cabeça, olhou pro lado, olhou pro outro e desabou a rir.
Assim cresceu Isaura. Ela não se apaixonou por aquele domador de cavalos na sorte. Ela viu nele um conquistador do mundo, alguém que desbravaria no peito aquela porteira que a prendia e a mostraria todo o mundo que ela só tinha na imaginação. Não conseguiu, mais jamais parou de sonhar.
Djalma cresceu neste meio, confuso entre as histórias de sua mãe e as do povo. Mas claramente aquilo o afetou e sua primeira mentira foi no primeiro dia de aula, aos seis anos de idade. A professora pediu que todos, por ordem de cadeira, se levantassem e dissessem seu nome, idade e nome dos pais. Ele era o último da fila do meio e vendo o quão monótono era aquela apresentação, esperando sua vez ele se levantou e disse:
– Meu nome é Josué, tenho 12 anos e sou filho do papai Noel e da Branca de Neve.
A classe caiu na risada, a professora achou super divertido o senso de humor do garotinho, mas o tempo passou e ela só soube só algum tempo depois que ele não havia mentido só o nome dos pais, mas também o próprio nome.
O retorno
Quando o caminhoneiro abriu os olhos, um sol forte dividia o céu. Ele rapidamente desceu do caminhão, olhou a temperatura da carga, avistou o lago há poucos passos à frente e foi molhar o rosto. Sentado na beira d’água o velho Djalma se lembrou da infância, de sua mãe, do casamento com Úrsula e entre tantas realidades, algumas fantasias como amigos imaginários, cidades que nunca foi, assaltos que nunca aconteceram e até empregos que jamais assumiu. Era um mundo só seu, onde ele se confundia às vezes. Traçava a personalidade em cima de uma linda mulher que via no jornal e está virava sua ex-namorada, via dois rapazes bebendo em um bar e contava para os filhos sobre os incríveis amigos que teve na juventude e de altas farras.
– Quem sou eu – murmurava para o lago.
Djalma voltou para seu caminhão e seguiu seu destino. Ao chegar à cidade ele entregou a carga e se enfurnou em uma pequena e afastada pensão, deixando o caminhão em um posto próximo. Foram cinco dias dentro de um quarto onde ele só saia para comer. Não avisou ninguém, não se preocupou com as consequências no emprego, simplesmente se deitou e dormiu.
Quando voltou para casa, foi recebido com abraços e xingos, não perdeu o emprego, a mulher não sabia se o agredia ou o beijava, os filhos olhavam desconfiado, Pablo e Carlos insistiam sempre para saber o que houve naqueles dias que ele sumiu e o velho sempre repetia o discurso:
– Já disse, fiquei em uma pensão e dormi alguns dias, não houve nada, eu só estava cansado – argumentava o velho.
Decepcionados, eles o deixavam e seguiram seu rumo. A mulher nada falava, já estava contente com sua presença, mas todos eram unânimes em afirmar que Djalma voltou sem aquele brilho nos olhos.
– Papai, acho que aconteceu algo com o senhor – tentou novamente Humberto.
– Que nada, eu só dormi demais – disse sorrindo.