Fechado desde 2019, edifício do século 19 sofre com ações do tempo, vandalismos e invasões
Considerado como um dos mais belos e imponentes casarões do período colonial de Minas Gerais, o sobrado de arquitetura colonial com três pavimentos construído no começo do século 19 em Pitangui que pertenceu à lendária senhora de escravos Maria Tangará e abrigou, dentre outras instituições, uma escola estadual entre 1930 e 2019, está abandonado e caindo aos pedaços.
O imóvel integra o Centro Histórico pitanguiense, tombado em 2008 pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). Proprietário do imóvel, o Governo de Minas não respondeu a nenhuma das perguntas feitas pelo PORTAL GERAIS no dia 3/4.
Em seus tempos de glória o imóvel foi sede do Fórum, do Externato, do Colégio Padre João Porto, assim como da Casa da Intendência de Minas. Em 5 de fevereiro de 1930 foi inaugurada a primeira escola que o prédio abrigou. Passados 94 anos desde a aula de estreia, a situação atual é de abandono.
Casarão Maria Tangará: Verdadeiro caos
Telhado aberto, paredes rachadas, vidraças quebradas, luzes queimadas, além disso muita poeira. Quando chove, a situação piora. A água, por exemplo, entra por todos os lados do casarão da lendária Maria Tangará. Enxurradas correm pelas escadas de madeira e o que resta depois é muita lama.
As salas de aula onde gerações foram iluminadas pelo conhecimento agora estão às escuras e cheias de morcegos.
Por causa dos perigos que todos esses problemas oferecem, incluindo riscos de acidentes elétricos, em 12 de abril de 2019 houve a transferência das turmas de alunos da Escola Estadual Professor José Valadares para a Escola Estadual Francisca Botelho. Ela fica a um quarteirão de distância.
Assim, a promessa de um possível restauro do casarão da lendária Maria Tangará manteve as expectativas da comunidade escolar. Mas, o não cumprimento do que havia sido prometido levou à extinção da Escola Estadual Professor José Valadares em 2020.
Restauração sem previsão
Desde então não houve por parte do Governo de Minas, que é o dono do imóvel, qualquer previsão para o começo da necessária restauração. Todos os alunos e funcionários da José Valadares seguem incorporados à Escola Estadual Francisca Botelho. Sem a utilidade escolar, o sobrado de Maria Tangará segue abandonado e sofrendo degradação do tempo, assim como aquela causada por vândalos e sem-tetos que o invadem.
Diretora lamenta abandono do Casarão da lendária Maria Tangará
A educadora Eliana Campos foi diretora da José Valadares por oito anos. Quando a escola fechou, coube a ela ser a guardiã das chaves do casarão. Sempre que alguém precisa entrar no edifício para fazer vistoria ou registrar a situação da estrutura, ela é chamada e não mede esforços para atender às demandas. De acordo com ela, cada volta traz à tona recordações de tantos momentos vividos ali.
Um desses momentos de viagem ao passado ocorreu em 2021, quando Eliana, então, guiou pela estrutura um grupo de estudantes que participava de uma oficina de produção de documentários para a “Mostra de Cinema de Pitangui” daquele ano. Depois de rememorar tantos momentos importantes da carreira de professora na José Valadares, ela concedeu uma entrevista emocionada. (Assista abaixo)
“Embora esse casarão tenha sido, no período escravagista, cenário de momentos muito tristes da história do Brasil, também foi palco de um importante momento de bondade em 1930, quando o prédio foi doado para ser fundada, criada e mantida aqui uma escola”.
Conforme a diretora, ela espera que políticos a níveis municipal, estadual e federal deixem diferenças de lado e busquem uma forma de restaurar o casarão.
“Que passe a funcionar aqui algo que traga benefícios para as comunidades pitanguiense, mineira e brasileira. Esse prédio não faz parte só da história de Pitangui, mas também da de Minas Gerais e do Brasil”, conclui.
Riscos de danos irreversíveis
Arquivista do Instituto Histórico de Pitangui (IHP), o historiador Israel Almeida condena o que classifica como “completo estado de abandono de um patrimônio histórico tão importante jogado às traças”. Conforme o historiador, a cada dia que passa sem receber os devidos cuidados o casarão se degrada um pouco mais e segue um curso que pode ser sem volta.
“Passados cinco anos desde a extinção da escola, infelizmente o prédio foi se tornando um depósito para lixo, depredação e invasão. Em uma vistoria técnica que tive o prazer de participar em 2023, pude ver de perto os danos causados pela ação do tempo, umidade e ocupação ilegal. Como um ex-aluno, foi de partir o coração voltar para um espaço que me proporcionou tantas experiências e que agora se encontra negligenciado”.
Com experiência no setor de gestão de patrimônio cultural, Israel explica que entende as dificuldades de promover políticas públicas, bem como ações efetivas para intervir em um bem patrimonial tão importante.
“Mas, sei também que o Estado deveria dar mais atenção a esse fato é que através do órgão estadual responsável, que é o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Minas Gerais (Iepha-MG), poderia-se tentar um diálogo entre os poderes estadual e municipal para que soluções possam ser pensadas e aplicadas de fato para salvar este bem patrimonial que, ao meu ver, é um dos mais simbólicos de nossa história”.
“Pouco tempo”
Entendendo a situação que viu durante a visita técnica ao imóvel como algo grave, Israel consultou alguns colegas das áreas de restauração e conservação de bens imóveis. Depois de mostrar a eles as fotos que ilustram esta reportagem, notou que eles foram unânimes ao alertarem sobre o pouco tempo que ainda há para agir antes que alguma parte da estrutura entre em colapso e o dano se torne irreversível.
“De acordo com eles, o interior do prédio foi totalmente alterado para atender à escola e o estado de abandono que ele se encontra é terrivelmente grave, mas não se pode prever ou teorizar um colapso total da estrutura. Existe risco de acidentes no interior do prédio. O tabuado tem risco de ceder e provavelmente o cheiro que advém do lixo e do entulho acumulado pode causar danos à saúde humana. A longo prazo a situação pode ficar pior e interiormente já está precarizada. É preciso haver iniciativas de educação patrimonial para que isso não ocorra em outros edifícios históricos e também para a própria conscientização da população”.
Israel diz que percebe em Pitangui algumas iniciativas em prol da municipalização do prédio – ou seja, que ele passe a ser, ao todo ou ao menos em parte, propriedade do Município. “Não creio que seria a melhor solução, dados os recursos robustos que precisarão ser investidos no restauro”.
Esperança na iniciativa privada
O empresário Haroldo Vasconcelos é um conhecido investidor em imóveis históricos de Pitangui. São dele, por exemplo, o antigo casarão de Monsenhor Vicente, cujo restauro custou R$ 2,5 milhões e hoje abriga sua pousada de mesmo nome) e o Edifício Liliza, que fez história ao ser teatro, cinema e, em tempos mais recentes, agência de correio e cujo restauro lhe custou R$ 1,1 milhão.
Os dois imóveis estavam em condições bastante precárias e corriam risco de caírem. Como eles não eram patrimônio público, Haroldo os comprou e restaurou. Não seria tão fácil fazer o mesmo com o casarão de Maria Tangará, uma vez que ele pertence ao Estado. Porém, Haroldo garante que já tentou – inclusive ao conversar com o governador Romeu Zema.
Oferta
Portanto, Haroldo defende que a oferta que fez ao governador teria sido o melhor para o casarão.
“Eu preferiria o que sugeri, porque tenho experiência em restaurar. Na época o curso estimado era de R$ 9 milhões. Agora, com todos os danos que já ocorreram, é bem mais. O casarão está caindo aos pedaços e isso faz com que restaurar fique cada vez mais caro”.
“Sem falar que tudo o que é feito pelo poder público demanda licitação. Portanto, levaria ainda mais tempo. E quanto mais a obra demora a começar, mais o imóvel se deteriora mais e a situação piora. Com base na minha experiência com isso, creio que o Estado não vai restaurar por iniciativa própria. Até porque não dá votos. Esse casarão é um dos mais importantes de Pitangui. A população precisa lutar pela restauração”.
Prefeitura busca posse
Conforme a prefeitura de Pitangui, o órgão já dialoga com o Governo de Minas com o objetivo de receber a posse do imóvel.
“Embora o casarão pertença ao Estado, é um patrimônio pitanguiense e por isso há interesse do Município em tê-lo. Apenas com a posse do imóvel é que a Prefeitura poderia investir recursos próprios ou destinar emendas parlamentares. Existe uma conversa junto ao Estado solicitando a cessão. Mas isso ainda está sendo discutido no âmbito estadual”.
MPMG na cola
No âmbito do Ministério Público estadual, a promotora de Patrimônio Histórico e Cultural de Pitangui, Larrice Luz Carvalho, informou ao PORTAL GERAIS que há um procedimento em andamento e que já segue na Justiça, com sentenças já determinadas contra o Estado.
“Temos uma reunião agendada com representantes do Estado para cobrarmos uma solução”, afirma.
Estado não se posiciona
Depois de coletar todos os relatos e registros que constam nesta reportagem, no dia 3 de abril o PORTAL GERAIS fez contato com o Governo de Minas, por meio da assessoria de imprensa, em busca de respostas para cada uma das questões apuradas. Em um e-mail enviado – e para o qual houve confirmação de recebimento – a reportagem listou os pontos apurados e fez uma série de perguntas relevantes e necessária para escolher cada um dos aspectos. Contudo, nenhuma delas foi respondida.