Prefeito reescreve a história política na qual aparece como o Redentor Administrativo do abandonado povo divinopolitano
Márcio Almeida*
O substantivo “abandono” foi o escolhido pelo prefeito Gleidson — durante fala em recente evento em praça pública — para definir os primeiros 109 dos 111 anos da história político-administrativa de Divinópolis. Como Gleidson está há dois anos no exercício do cargo, a frase significa, literalmente, que Divinópolis, na avaliação do atual chefe do Executivo, esteve política e administrativamente abandonada durante todo o tempo anterior à sua chegada à Prefeitura, ocorrida no ano da graça de 2021.
Reproduzida em vídeo pela mídia, a fala do prefeito foi feita em um contexto que obviamente não contém nem ironia, nem brincadeira, nem utilização metafórica de palavras, que incluem, aliás, uma utilização da matemática para definir com exatidão a quantidade de anos do abandono divinopolitano: 109, nem mais, nem menos. A fala deve ser entendida, portanto, como sendo aquilo que de fato é: a afirmação, pelo atual prefeito, de que a trajetória de Divinópolis é uma secular história de abandono.
Como é compreensível, essa declaração motivou nas últimas horas, tanto nos meios políticos quanto fora deles, algumas indagações de ordem psicológica e até psiquiátrica e neurológica. Elas foram expressas, entre outros, pelo presidente da Câmara, Eduardo Print Jr., que, ao comentar o caso, considerou a possibilidade de um diagnóstico de mitomania, situação em que alguém cria realidades paralelas e passa a crer nelas. É possível que venham outros diagnósticos, levando em conta, inclusive, falas anteriores do prefeito.
Como há quem possa realizá-los com competência técnica nos campos médico e psicológico, ou mesmo psicanalítico, todos eles fora do alcance e do domínio teórico do autor destas linhas, é o caso, aqui, de concentrar a análise nos aspectos da narrativa do chefe do Executivo, que são igualmente interessantes. Submetida aos princípios de análise do discurso, ramo da linguística e da comunicação que estuda o modo como as ideias se mostram nas falas, a afirmação de Gleidson é bastante reveladora.
Ela revela, em primeiro lugar, que o prefeito vê a si mesmo como uma espécie de ungido, algo como um Redentor Administrativo ao qual a Entidade Política chamada Cleitinho Azevedo incumbiu de guiar os destinos da abandonada gente divinopolitana. Essa unção, que o coloca acima das mulheres e homens de Divinópolis, é a provável explicação de falas anteriores, como aquela em que Gleidson deu a si mesmo o direito de humilhar um agente de trânsito que cumpria seu trabalho e em seguida divulgar a humilhação em redes sociais.
Essa mesma unção explica, talvez, o fato de Gleidson ter dado a si o direito de chamar de “vagabundo” um sindicalista que pedia, em manifestação pacífica na porta da Prefeitura, que fosse concedida aos servidores recomposição salarial prevista em lei. E explica, quem sabe, o fato de o prefeito ter se permitido destratar um educado apresentador do Sistema MPA, xingar repórteres que publicam textos sobre sua gestão dos quais não gostou ou lançar dúvidas quanto ao consumo de drogas ilícitas por homens públicos que criticam algumas de suas atitudes.
Em segundo lugar, mas não menos importante, essa fala sobre o abandonado povo divinopolitano, agora redimido pela vinda do seu Redentor Administrativo — e por sua pregação que flui abundante pelo Tik-Tok, pelo Facebook e pelo Instagram —, mostra que a própria história político-administrativa de Divinópolis ganhou um novo sentido. Assim como se deu no ano 1 da nossa era, marco do calendário ocidental, há um antes de Gleidson e um depois de Gleidson. Seu mandato é o divisor de águas. É à luz dele que se avaliam o passado e o presente.
Antes de Gleidson, nos séculos 17 e 18 viveram no abandono os corajosos índios Candidés, assim como abandonados estavam o desbravador João Pimenta Ferreira e as cinquenta famílias com as quais fundou um povoado às margens do Itapecerica e do Pará. Abandonados estavam também os operários e operárias que no fim do século 19 construíram a Estrada de Ferro Oeste de Minas, tornando viável a instalação de indústrias que viriam produzir ferro e aço naquela que passou a se chamar a Vila de Henrique Galvão.
Veio o século 20, mas não trouxe consigo a superação do abandono. Assim, abandonado estava o visionário urbanista Antônio Olympio de Moraes, que assinou o decreto dando à crescente vila o nome de Divinópolis, em homenagem à fé que o povo do lugar depositava e ainda deposita no Espírito Santo. Nem as luzes do Espírito Santo superaram, porém, o abandono. E abandonados estavam os amorosos franciscanos e vários outros homens de pensamento, de fé e de ação que ao longo de mais de um século dedicaram suas vidas a construir a cidade.
No passado, a cidade ficou abandonada a homens e mulheres que dedicaram parte importante de suas vidas à municipalidade e que hoje dão nome a ruas, praças e avenidas, como João Notini, Jovelino Rabelo, Walchir Resende e Fábio Notini. No período mais próximo, o povo divinopolitano tem estado em abandono sob a condução de nomes como Antônio Martins, Fábio Notini, Aristides Salgado, Galileu Machado, Domingos Sávio e Demétrius Pereira. E mergulhados no abandono, naturalmente, têm estado todos os parlamentares, ativistas e movimentos sociais.
Todos eles compõem, por assim dizer, uma grande pré-história. Nenhum trouxe de fato a capacidade de superar o abandono divinopolitano. No fim das contas, o que fizeram pela saúde, o saneamento, a educação, a cultura, a assistência social, a zona rural, o desenvolvimento econômico e social, o urbanismo e outras áreas não foi significativo. Aliás, foi insignificante, tão insignificante que não conseguiu vencer o abandono de 109 anos a que foi relegada a maior cidade do Oeste de Minas e uma das maiores e mais promissoras de Minas Gerais.
Nenhum desses homens e mulheres, nenhuma de suas muitas ações e esforços tiveram a capacidade de vencer o abandono congênito de Divinópolis. No passado e no presente, o que se vê é apenas uma gente abandonada, que ficou à mercê da sua má sorte até que um ser ungido veio em seu socorro e deu início oficial à história da capital do Oeste de Minas. E é assim, sentado à extrema-direita de Cleitinho, Pai Simbólico do Reino Triunfante da Família Azevedo, que o prefeito Gleidson vai julgando os vivos e os mortos.
- Márcio Almeida é analista político do Portal Gerais e escreve semanalmente neste espaço.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do PORTAL GERAIS.